terça-feira, 24 de setembro de 2013

Em chamas - capitulo 1




Eu aperto a garrafa térmica entre as mãos, embora o calor do chá já há muito tivesse ido. Meus músculos estão tensamente cerrados contra o frio. Se uma matilha de cães selvagens fosse aparecer neste momento, a chance de escalar uma árvore antes que eles atacassem não está em meu favor. Eu deveria levantar-me, me movimentar e trabalhar a rigidez dos meus membros. Mas ao invés disso eu me sento, tão imóvel quanto a pedra embaixo de mim, enquanto a alvorada começa a clarear a floresta. Eu não posso lutar contra o sol. Só posso assistir impotente enquanto ele me arrasta para um dia que eu estive temendo por meses.Ao meio-dia todos estarão na minha nova casa na Vila dos Vitoriosos. Os repórteres, as equipes de filmagem, mesmo Effie Trinket, minha antiga escolta, terá feito seu caminho para o Distrito 12 da Capital. Eu me pergunto se Effie ainda estará usando aquela peruca rosa boba ou se ela estará ostentando alguma outra cor artificial, especialmente para o Tour da Vitória. Haverá outros à espera, também. Uma equipe de funcionários para atender a todas as minhas necessidades na longa viagem de trem. Uma equipe de preparação para embelezar-me para aparições públicas. Meu estilista e amigo, Cinna, que desenhou as roupas maravilhosas que pela primeira vez fez o público tomar conhecimento de mim nos Jogos Vorazes.Se dependesse de mim, eu tentaria esquecer os Jogos Vorazes inteiramente. Nunca falar dele. Fingir que ele não foi nada além de um pesadelo. Mas o Tour da Vitória torna isso impossível. Estrategicamente arranjada quase a meio caminho entre os Jogos anuais, é a maneira de a Capital manter o horror fresco e imediato. Nós dos distritos não apenas somos forçados a lembrar do punho de ferro do poder da Capital a cada ano, como somos obrigados a celebrá-lo. E neste ano, eu sou uma das estrelas do show. Vou ter que viajar de distrito em distrito, para estar diante das multidões eufóricas que secretamente me detestam, para olhar para baixo para os rostos das famílias cujos filhos eu matei...O sol insiste em nascer, então eu me coloco de pé. Todas as minhas articulações reclamam e minha perna esquerda ficou dormente por tanto tempo que leva vários minutos de estimulação para fazer o sangue voltar a circular por ela. Fiquei na floresta por três horas, mas como não fiz nenhuma tentativa real de caça, não tenho nada para mostrar.Isso não importa para minha mãe e minha irmãzinha, Prim, agora. Elas podem permitir-se comprar carne no açougue da cidade, embora nenhuma de nós goste disso mais do que qualquer caça fresca. Mas o meu melhor amigo, Gale Hawthorne, e sua família estarão dependendo da aquisição de hoje e não posso decepcioná-los. Eu começo a caminhada de uma hora e meia que demorará para cobrir nossa linha de armadilhas. Quando estávamos na escola, nós tínhamos tempo à tarde para verificar a linha, caçar, colher e ainda voltar para o comércio na cidade. Mas agora que Gale passou a trabalhar nas minas de carvão – e eu não tenho nada para fazer durante o dia todo – tenho assumido o trabalho.A esta altura Gale terá batido ponto nas minas, tomado a viagem de elevador que faz revirar o estômago para as profundezas da terra, e ser empurrado para longe em uma camada de carvão.Eu sei como é lá em baixo. Todos os anos na escola, como parte da nossa formação, a minha turma teve que visitar as minas. Quando eu era pequena, era apenas desagradável. Os túneis claustrofóbicos, falta de ar, escuridão sufocante em todos os lados. Mas depois que meu pai e vários outros mineiros morreram em uma explosão, eu mal podia me forçar para o elevador. A viagem anual tornou-se uma enorme fonte de ansiedade. Duas vezes eu me senti tão doente com a expectativa disso que minha mãe me manteve em casa porque pensou que eu tinha contraído a gripe.Eu penso em Gale, que só é realmente vivo na floresta, com o seu ar fresco, a luz solar e água corrente limpa. Eu não sei como ele aguenta isso. Bem... sim, eu sei. Ele aguenta porque é a maneira de alimentar a mãe, dois irmãos mais novos e uma irmã. E aqui estou eu com baldes de dinheiro, muito mais do que suficiente para alimentar nossas duas famílias agora, e ele não terá uma única moeda. É mesmo difícil para ele deixar-me levar carne, embora ele certamente tivesse mantido minha mãe e Prim abastecidas se eu tivesse sido morta nos Jogos. Eu digo que ele está me fazendo um favor, que me deixa louca ficar sentada durante todo o dia. Mesmo assim, eu nunca entregaria a caça enquanto ele está em casa. O que é fácil, uma vez que ele trabalha doze horas por dia.A única hora que eu realmente consigo ver Gale agora é aos domingos, quando nos encontramos na floresta para caçar juntos. É ainda o melhor dia da semana, mas não é como costumava ser, quando nós poderíamos dizer um ao outro qualquer coisa. Os Jogos estragaram até isso. Eu continuo esperando que conforme o tempo passe, vamos recuperar a naturalidade entre nós, mas parte de mim sabe que é inútil. Não há como voltar atrás.Obtenho boa carne das armadilhas – oito coelhos, dois esquilos e um castor que nadava em uma engenhoca de arame que Gale mesmo projetou. Ele é uma espécie de gênio com armadilhas, armando-as em pequenas árvores arqueadas para que mantenham a caça fora do alcance de predadores, equilibrando troncos em delicados gatilhos de galho seco, tecendo cestas de onde não se podem escapar para capturar peixes.Enquanto vou adiante, restaurando cuidadosamente cada armadilha, sei que nunca consigo reproduzir seus olhos para o equilíbrio, o seu instinto para onde a presa irá cruzar o caminho. É mais do que experiência. É um dom natural. Como a maneira com que posso atirar em um animal na escuridão quase completa e ainda derrubá-lo com uma flecha.Até o momento que volto para a cerca que circunda o Distrito 12, o sol está bem acima. Como sempre, eu escuto um momento, mas não há nenhum zumbido indicador de funcionamento de corrente elétrica pela cadeia de ligação.Lá quase nunca tem, mesmo que a coisa devesse estar carregada em tempo integral. Eu me remexo através da abertura na parte inferior da cerca e chego até a Campina, a poucos passos de distância de minha casa. Minha antiga casa. Nós ainda ficamos com ela desde que oficialmente é a moradia designada para minha mãe e irmã. Se eu cair morta agora mesmo, elas teriam que voltar para ela. Mas no momento, ambas estão alegremente instaladas na nova casa na Vila dos Vitoriosos, e eu sou a única que usa o pequeno lugar apertado onde fui criada. Para mim, é minha verdadeira casa.Eu vou lá agora para mudar minhas roupas. Trocar a velha jaqueta de couro de meu pai por um casaco de lã fina que sempre parece muito apertado nos ombros. Deixar minhas botas de caça macias e desgastadas por um par de sapatos caros feitos à máquina que a minha mãe acha que é mais apropriado para alguém na minha posição.Eu já arrumei meu arco e flechas em um tronco oco na floresta. Embora o tempo esteja se acabando, eu me permito alguns minutos para sentar-me na cozinha. Tem uma característica abandonada sem fogo na lareira, sem pano sobre a mesa. Sinto saudades da minha antiga vida aqui. Nós vivíamos escassamente, mas eu sabia onde me encaixava, sabia qual era meu lugar no tecido firmemente entrelaçado que era a nossa vida. Eu gostaria de poder voltar a ela, porque, em retrospecto, parece tão segura em comparação com agora, quando estou tão rica, tão famosa e tão odiada pelas autoridades da Capital.Um choro na porta dos fundos exige a minha atenção. Eu a abri para encontrar Buttercup, o velho gato desmazelado de Prim. Ele não gosta da nova casa quase tanto quanto eu e sempre a deixa quando a minha irmã está na escola. Nós nunca fomos particularmente afeiçoados um pelo outro, no entanto agora temos este novo vínculo. Eu o deixo entrar, alimento-o com um pedaço de gordura do castor e até mesmo esfrego-lhe entre as orelhas um pouco— Você é horrível. Sabe disso, certo? — pergunto-lhe. Buttercup empurra delicadamente a minha mão por mais carícias, mas temos que ir. — Vamos lá.Eu o alcanço com uma mão, pego minha bolsa de caça com a outra e arrasto-os para fora na rua. O gato salta livre e desaparece debaixo de um arbusto.Os sapatos apertam meus dedos enquanto eu ando ruidosamente ao longo da rua de concreto. Cortando por becos e através de quintais chego à casa de Gale em minutos. Sua mãe, Hazelle, me vê através da janela, onde está curvada sobre a pia da cozinha. Ela enxuga as mãos no avental e desaparece para me encontrar na porta.Eu gosto de Hazelle. Respeito-a. A explosão que matou o meu pai tirou-lhe o marido também, deixando-a com três meninos e um bebê para qualquer momento. Menos de uma semana depois que ela deu à luz, ela estava caçando por trabalho nas ruas. As minas não eram uma opção, levando em consideração um bebê para cuidar, mas ela conseguiu roupas para lavar de alguns dos comerciantes da cidade.Aos quatorze anos, Gale, o mais velho dos filhos, se tornou o principal provedor da família. Ele já estava inscrito para as tésseras, o que lhes deu direito a um suprimento insuficiente de grãos e óleo em troca de ele inserir o seu nome vezes extras na extração para tornar-se um tributo. Por outro lado, mesmo naquela época, ele era um hábil caçador. Mas não era suficiente para manter uma família de cinco pessoas sem Hazelle esfregar seus dedos até o osso naquela tábua de lavar. No inverno, suas mãos ficavam tão vermelhas e rachadas que sangravam à menor provocação. Ainda ficariam se não fosse por um unguento que a minha mãe inventou.Eles estão determinados, Hazelle e Gale, que os outros meninos, Rory de doze anos, Vick de dez e o bebê Posy de quatro anos, nunca terão que se inscrever para tésseras.Hazelle sorri quando vê a caça. Ela pega o castor pelo rabo, sentindo o seu peso.— Ele vai dar um bom guisado.Ao contrário de Gale, ela não tem nenhum problema com o nosso acordo de caça.— Boa pele, também — respondo.É confortante aqui com Hazelle. Pesando os méritos da caça, assim como sempre fazemos. Ela me serve uma caneca de chá de ervas, na qual eu envolvo meus dedos gelados de uma forma grata.— Você sabe, quando eu voltar da turnê, estava pensando que poderia levar Rory comigo algumas vezes. Depois da escola. Ensiná-lo a atirar.Hazelle assentiu.— Isso seria bom. Gale pretendia, mas ele só tem o domingo, e acho que ele gosta de guardá-los para você.Eu não posso impedir a vermelhidão que inunda o meu rosto. É estúpido, claro. Quase ninguém me conhece melhor do que Hazelle. Sabe o vínculo que compartilho com Gale. Tenho certeza que muitas pessoas achavam que nós eventualmente iríamos casar, mesmo que eu nunca tivesse qualquer pensamento desses. Mas isso foi antes dos Jogos. Antes do meu companheiro tributo, Peeta Mellark, anunciar que estava loucamente apaixonado por mim. Nosso romance tornou-se uma estratégia fundamental para a nossa sobrevivência na arena. Só que não era apenas uma estratégia para Peeta. Não tenho certeza do que era para mim. Agora eu sei que não era nada menos doloroso para Gale. Meu peito aperta quando penso sobre como, no Tour da Vitória, Peeta e eu teremos que apresentar-nos como casal de namorados novamente.Eu engulo o meu chá mesmo que esteja muito quente e empurro para trás da mesa.— É melhor eu ir. Fazer-me apresentável para as câmeras.Hazelle abraça-me.— Aproveite o alimento.— Absolutamente — respondo.Minha próxima parada é no Prego, onde tenho tradicionalmente feito a maior parte da minha negociação. Anos atrás era um entreposto para armazenar carvão, mas quando caiu em desuso, tornou-se um local de encontro para o comércio ilegal e em seguida floresceu em um mercado negro em tempo integral. Se ele atrai um elemento um tanto criminoso, então eu pertenço a aqui, acho. Caçar nos bosques circundantes do Distrito 12 viola pelo menos uma dúzia de leis e é punível com a morte.Embora eles nunca mencionem isso, eu devo às pessoas que frequentam o Prego. Gale disse-me que Greasy Sae, a mulher que serve sopa, iniciou uma coleta para patrocinar Peeta e eu durante os Jogos. Deveria ser apenas uma coisa no Prego, mas um monte de outras pessoas ouviu falar disso e contribuiu. Eu não sei exatamente quanto foi, e o preço de qualquer presente na arena era exorbitante. Mas pelo o que sei, fez a diferença entre a minha vida e a morte.Ainda é estranho empurrar para abrir a porta da frente com um saco de caça vazio, sem nada para o comércio, e em vez disso sentir a bolsa pesada de moedas contra meu quadril. Eu tento visitar tantas barracas quanto possível, distribuindo minhas compras de café, pães, ovos, fios e óleo. Pensando bem, eu compro três garrafas de licor branco de uma mulher com um só braço chamada Ripper, vítima de um acidente de mina que foi inteligente o suficiente para encontrar uma maneira de permanecer viva.A bebida não é para minha família. É para Haymitch, que atuou como um mentor para Peeta e eu nos Jogos. Ele é grosseiro, violento e bêbado na maior parte do tempo. Mas ele fez o seu trabalho – mais do que o seu trabalho – porque, pela primeira vez na história, dois tributos foram autorizados a ganhar. Então não importa quem Haymitch é, devo a ele também. E isso é para sempre. Estou levando o licor branco porque, algumas semanas atrás, ele saiu correndo e não havia nenhum à venda e ele teve uma crise de abstinência, tremendo e gritando coisas terríveis que só ele podia ver. Ele assustou Prim como a morte e, francamente, não foi muito divertido para mim vê-lo assim também. Desde então eu tenho um tipo de estocagem do material apenas no caso de haver uma escassez de novo.Cray, o nosso Pacificador Chefe, franze a testa quando me vê com as garrafas. Ele é um homem mais velho, com alguns fios de cabelos prateados penteados para os lados acima de seu rosto vermelho.— Isso é muito forte para você, menina.Ele deve saber. Seguidor de Haymitch, Cray bebe mais do que qualquer um que eu já tenha conhecido.— Ah, minha mãe usa em medicamentos — digo com indiferença.— Bem, ele dá um ótimo anestésico — diz ele, e joga uma moeda por uma garrafa.Quando eu chego a tenda de Greasy Sae, me impulsiono para cima para sentar-me sobre o balcão e peço uma sopa, que parece ser uma espécie de mistura de abóbora e feijão. Um Pacificador chamado Darius aparece e compra uma tigela enquanto eu estou comendo. Ele é um dos meus Pacificadores favoritos. Nunca realmente lançando opressão ao redor, geralmente bom para uma piada. Ele está, provavelmente, em seus vinte anos, mas não parece muito mais velho do que eu. Algo sobre o seu sorriso, seu cabelo vermelho que sobressai em todos os sentidos, dá-lhe uma característica de menino.— Você não deveria estar em um trem? — ele me pergunta.— Eles vão me pegar ao meio-dia — respondo.— Você não deveria aparentar melhor? — ele pergunta em um sussurro alto.Eu não posso deixar de sorrir com sua provocação, apesar do meu humor.— Talvez uma fita em seu cabelo ou algo assim? — Ele levanta minha trança com sua mão e eu a empurro para longe.— Não se preocupe. Até o momento que eles terminarem comigo eu vou estar irreconhecível — digo.— Bom — diz ele. — Vamos mostrar um pouco de orgulho pelo Distrito para variar, Senhorita Everdeen. Hum?Ele balança a cabeça para Greasy Sae em falsa desaprovação e sai para se juntar aos seus amigos.— Eu quero a tigela de volta — Greasy Sae grita para ele, mas visto que ela está rindo, não parece particularmente severa. — Gale vai ver você ir embora? — ela me pergunta.— Não, ele não estava na lista. Eu o vi domingo, entretanto.— Achei que ele tinha feito a lista. Ele sendo seu primo e tudo — diz ela ironicamente.É apenas mais uma parte da mentira que a Capital inventou. Quando Peeta e eu chegamos aos oito finalistas dos Jogos Vorazes, a Capital enviou repórteres para fazer histórias pessoais sobre nós. Quando perguntaram sobre meus amigos, todos lhes dirigiram a Gale. Mas não funcionaria, com o romance que eu estava fingindo na arena, ter o meu melhor amigo sendo Gale. Ele era muito bonito, muito macho, e nem um pouco disposto a sorrir e jogar bonito para as câmeras.Nós nos parecemos, todavia, um pouco. Nós temos aquela aparência de mineração. Cabelo liso escuro, pele cor de oliva, olhos cinzentos. Então algum gênio o fez meu primo. Eu não sabia sobre isso até que já estávamos em casa, na plataforma da estação ferroviária, e minha mãe disse:— Seus primos mal podem esperar para vê-la!Então me virei e vi Gale, Hazelle e todas as crianças esperando por mim, então o que eu podia fazer senão ir junto?Greasy Sae sabe que não somos aparentados, mas até mesmo algumas das pessoas que nos conheceram por anos parecem ter esquecido.— Eu mal posso esperar para a coisa toda estar acabada — sussurro.— Eu sei — diz Greasy Sae. — Mas você tem que passar por isso para chegar ao final. É melhor não se atrasar.Uma neve fina começa a cair enquanto eu faço o meu caminho para a Vila dos Vitoriosos. Trata-se de uma caminhada de meio quilômetro da praça no centro da cidade, mas parece um mundo completamente diferente.É uma comunidade separada construída em torno de um gramado bonito, pontilhada de arbustos floridos. Há doze casas, cada uma delas grande o suficiente para conter dez da que eu fui criada. Nove estão vazias, como sempre estiveram. As três em uso pertencem a Haymitch, Peeta e eu.As casas habitadas por minha família e Peeta emitem um fulgor morno de vida. Janelas iluminadas, fumaça das chaminés, cachos coloridos de milho afixados nas portas da frente como decoração para o próximo Festival da Colheita. No entanto, a casa de Haymitch, apesar dos cuidados tomados pelos jardineiros, exala um ar de abandono e negligência.Eu me preparo em sua porta da frente, sabendo que será desagradável, então empurro para dentro.Meu nariz imediatamente torce em desgosto. Haymitch se recusa a deixar qualquer um entrar para limpar e faz um trabalho pobre ele mesmo. Ao longo dos anos, os odores de bebida destilada e vômito, repolho cozido e carne queimada, roupas sujas e fezes de rato se misturaram em um cheiro que me traz lágrimas aos olhos.Percorro uma desordem de embalagens descartadas, vidro quebrado e ossos até onde eu sei que vou encontrar Haymitch. Ele se senta à mesa da cozinha, seus braços esparramados em toda a madeira, o rosto em uma poça de bebida destilada, roncando com sua cabeça inteiramente virada.Eu cutuco seu ombro.— Levante-se! — digo em voz alta, porque aprendi que não há maneira sutil para acordá-lo.Seu ronco para por um momento, interrogativamente, em seguida, recomeça. Eu empurro-o mais.— Levante-se, Haymitch. É o dia do Tour!Eu forço a janela para cima, inalando profundamente do ar puro lá fora.Meus pés deslocam através do lixo no chão, desenterro um bule de lata e encho-o na pia. O fogão não está completamente desligado e eu consigo atiçar as poucas brasas em chamas. Derramo algum café moído no pote, o suficiente para garantir que a bebida resultante será boa e forte, e a ponho no fogão para ferver.Haymitch ainda está morto para o mundo. Uma vez que nada mais deu certo, encho uma bacia com água gelada, despejo-a sobre a sua cabeça e pulo para fora do caminho.Um som gutural vem de sua garganta. Ele pula de pé, chutando sua cadeira dez metros atrás dele e empunhando uma faca. Esqueci-me que ele sempre dorme com uma apertada em sua mão. Eu deveria tê-la removido de seus dedos, mas eu tinha muita coisa na minha mente. Vomitando obscenidades, ele corta o ar por alguns momentos antes de voltar a seus sentidos. Ele limpa o rosto na manga da camisa e se vira para o peitoril da janela onde eu me empoleiro, apenas no caso de precisar fazer uma saída rápida.— O que você está fazendo? — ele explode.— Você me disse para te acordar uma hora antes de as câmeras chegarem — respondo.— O quê?— Sua ideia — insisto. Ele parece se lembrar.— Por que estou todo molhado?— Eu não consegui acordá-lo com uma sacudida. Olha, se você queria ser mimado, deveria ter pedido a Peeta.— Pedir-me o quê?Apenas o som de sua voz revira meu estômago em um nó de emoções desagradáveis, como culpa, tristeza e medo. E saudade. Eu poderia muito bem admitir que há um pouco disso também. Apenas tem muita concorrência para sempre vencer.Eu observo enquanto Peeta cruza para a mesa, a luz do sol da janela batendo levemente no brilho de neve fresca em seus cabelos loiros. Ele parece forte e saudável, tão diferente do menino doente e faminto que conheci na arena, e você mal pode sequer notar ele mancando agora. Ele coloca uma massa de pão fresco assado sobre a mesa e estende a mão para Haymitch.— Pedir-lhe para me acordar sem me causar pneumonia — diz Haymitch, passando a faca.Ele puxa a camisa imunda, revelando uma camiseta igualmente encardida, e esfrega-se com a parte seca.Peeta sorri e mergulha a faca de Haymitch no licor branco de uma garrafa no chão. Ele seca a lâmina limpa na parte de baixo da camisa e fatia o pão. Peeta mantém todos nós com pães frescos.Eu caço. Ele assa. Haymitch bebe. Nós temos nossa própria maneira de ficarmos ocupados, para manter os pensamentos do nosso tempo como concorrentes nos Jogos Vorazes afastados. Não foi até que ele tivesse entregue a Haymitch o resto que ele me olha pela primeira vez.— Quer um pedaço?— Não, eu comi no Prego. Mas obrigada.Minha voz não soa como minha própria, é tão formal. Assim como tem sido cada vez que eu falei com Peeta desde que as câmeras terminaram de filmar o nosso feliz regresso para casa e nós voltamos para nossa vida real.— De nada — ele responde rigidamente. Haymitch joga sua camisa em algum lugar na bagunça.— Brrr. Vocês dois têm muito aquecimento para fazer antes do show.Ele está certo, claro. O público vai estar esperando o casal de pombinhos que venceu os Jogos Vorazes. Não duas pessoas que mal conseguem se olhar nos olhos.Mas tudo que eu digo é:— Tome um banho, Haymitch.Então eu me balanço para fora da janela, caio no chão e me dirijo através do gramado para a minha casa.A neve começa a grudar e eu deixo um rastro de pegadas atrás de mim. Na porta da frente, paro para bater a coisa molhada dos meus sapatos antes de entrar. Minha mãe tem trabalhando dia e noite para fazer tudo perfeito para as câmeras, por isso não é hora para deixar rastros em seu piso brilhante. Eu mal entro quando ela está lá, segurando meu braço como se para me parar.— Não se preocupe, estou tirando eles daqui — digo, deixando meus sapatos sobre o capacho.Minha mãe dá uma risada estranha, sussurrante e retira o saco de caça carregado com suprimentos de meu ombro.— É apenas neve. Você fez um passeio agradável?— Passeio?Ela sabe que eu estive na floresta metade da noite. Então vejo o homem de pé atrás dela na porta da cozinha. Um olhar para o seu terno sob medida e características cirurgicamente aperfeiçoadas e sei que ele é da Capital. Algo está errado.— Foi mais como patinar. Está realmente ficando escorregadio lá fora.— Alguém está aqui para vê-la — diz minha mãe.Seu rosto está muito pálido e eu posso ouvir a ansiedade que ela está tentando esconder.— Pensei que eles não viriam até o meio dia — finjo não perceber o seu estado. — Cinna veio mais cedo para me ajudar a me aprontar?— Não, Katniss, é... — a minha mãe começa.— Por aqui, por favor, senhorita Everdeen — diz o homem.Ele aponta para o corredor. É estranho ser acompanhada em sua própria casa, mas eu sei que é melhor não fazer um comentário sobre isso.Enquanto vou, dou a minha mãe um sorriso tranquilizador por sobre meu ombro.— Provavelmente mais instruções para a turnê.Eles têm me enviado todos os tipos de coisas sobre o meu itinerário e que protocolo será observado em cada distrito. Mas enquanto eu ando em direção à porta do escritório, uma porta que eu nunca vi fechada até este momento, posso sentir minha mente começar a correr. Quem está aqui? O que eles querem? Por que que a minha mãe está tão pálida?— Entre aí — diz o homem da Capital, que me seguiu pelo corredor.Eu torço a maçaneta de bronze polido e entro. Meu nariz registra os aromas conflitantes de rosas e sangue. Um homem pequeno, de cabelos brancos que parece vagamente familiar está lendo um livro. Ele levanta um dedo, como se dissesse “Dê-me um momento”. Então ele se vira e meu coração perde uma batida.Estou olhando fixamente nos olhos de cobra do Presidente Snow.

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