sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Jogos vorazes - capitulo 27




O hino retumba em meus ouvidos, e ouço Caesar Flickerman saudando o público. Será que ele sabe o quanto é crucial escolher as palavras certas de agora em diante? Ele deveria saber. Ele vai querer nos ajudar.
A multidão irrompe em aplausos quando a equipe de preparação é apresentada. Imagino Flavius, Venia e Octavia gingando em direção ao palco e recebendo as mais ridículas mesuras. É límpido e certo que eles não fazem a menor ideia. Então, Effie é apresentada. Quanto tempo ela não esperou por esse momento. Espero que seja capaz de aproveitar bastante, porque por mais que Effie seja mal orientada, ela possui um instinto bem certeiro para certas coisas e deve, pelo menos, estar suspeitando de que estamos em apuros.Portia e Cinna recebem imensas demonstrações de entusiasmo, é claro. Eles foram brilhantes, fizeram uma estreia esplendorosa. Agora compreendo o vestido que Cinna escolheu para eu usar essa noite. Vou precisar parecer mais ingênua e inocente do que nunca.A aparição de Haymitch proporciona uma rodada de efusivos aplausos que dura pelo menos cinco minutos. Bem, ele conseguiu um feito inédito. Manteve não só um, mas dois tributos vivos. E se ele não tivesse me alertado em tempo hábil? Será que eu agiria de maneira diferente? Será que eu ostentaria o episódio das amoras e esfregaria na cara da Capital? Não, acho que não. Mas eu poderia facilmente me portar de modo muito menos convincente do que preciso agora. Neste exato momento. Porque estou começando a sentir a placa de metal me erguendo até o palco.Luzes ofuscantes. O bramido ensurdecedor sacode o metal abaixo de mim. Então, vejo Peeta a apenas alguns metros de distância. Ele parece tão límpido, saudável e belo, que mal o reconheço. Mas seu sorriso é o mesmo, seja na lama, seja na Capital e, quando o vejo, dou três passos e me lanço em seus braços. Ele cambaleia para trás, quase perdendo o equilíbrio, e é então que percebo que o equipamento de metal fininho em sua mão é uma espécie de bengala.Ele endireita a postura e nós grudamos um no outro enquanto o público entra em estado de ebulição. Ele está me beijando e o tempo todo estou pensando, Você sabe? Você sabe o quanto estamos correndo perigo? Depois de mais ou menos dez minutos disso, Caesar Flickerman dá um tapinha em seu ombro para que o show possa prosseguir, e Peeta simplesmente o empurra para o lado sem nem mesmo olhar para ele. O público enlouquece. Ciente ou não da história, Peeta está, como de hábito, desempenhando o seu papel com muito talento.Por fim, Haymitch nos interrompe e nos dá um empurrãozinho bem-intencionado na direção da cadeira do vitorioso. Normalmente, é uma única e bela cadeira de onde o tributo vencedor assiste a um filme com os melhores momentos dos Jogos, mas como há dois vencedores, os Gamemakers dos Jogos providenciaram um elegante sofá de veludo vermelho. Tão pequena que minha mãe o chamaria de sofá do amor, eu acho.Sento-me tão perto de Peeta que praticamente estou no seu colo, mas uma olhadinha na direção de Haymitch me diz que isso não é suficiente. Chutando as sandálias, ponho os pés ao lado e encosto a cabeça no ombro de Peeta. Seu braço me envolve automaticamente e tenho a sensação de estar de vota à caverna, enroscada nele, tentando me manter aquecida.Sua camisa é feita do mesmo material amarelo que meu vestido, mas Portia o colocou em calças compridas pretas. Em vez de sandálias, está usando um par de robustas botas pretas, que ele mantém solidamente plantadas no chão do palco. Gostaria que Cinna tivesse me dado um traje similar, sinto-me muito vulnerável nesse vestido diáfano. Mas imagino que essa era exatamente a proposta.Caesar Flickerman faz mais algumas piadas e então chega a hora do show. Vai durar exatamente três horas e todas as pessoas de Panem devem assistir. À medida que as luzes começam a diminuir de intensidade e a insígnia aparece na tela, percebo que estou despreparada para tudo isso. Não quero assistir a morte dos meus vinte e dois colegas tributos. Vi mortes suficientes ao vivo. Meu coração começa a bater com força e sinto um impulso muito forte para sair correndo dali. Como os outros vitoriosos encaram isso sozinhos? Durante os melhores momentos, eles mostram de tempos em tempos a reação do vencedor num quadradinho no canto da tela. Recordo-me de anos anteriores... alguns são triunfantes, socando o ar, batendo no peito. A maioria parece simplesmente atônita.Tudo o que sei é que a única coisa que está me mantendo nesse sofá do amor é Peeta – seu braço em meu ombro, sua outra mão segura pelas minhas duas. É claro que os vitoriosos anteriores não tinham em seu encalço a Capital em busca de uma maneira de destruí-los.Condensar várias semanas em três horas é um feito impressionante, principalmente se considerarmos a quantidade de câmeras que estavam sendo usadas de uma vez. Quem quer que seja o responsável pela edição dos melhores momentos, tem de escolher que tipo de história deseja privilegiar. Esse ano, pela primeira vez, eles estão contando uma história de amor. Sei que Peeta e eu vencemos, mas uma quantidade de tempo desproporcional de tempo foi gasta conosco, desde o início. Mas estou contente, porque isso acaba apoiando toda aquela coisa dos loucamente apaixonados que é a minha defesa por haver desafiado a Capital, e ainda por cima significa que nós não teremos muito tempo para sentir remorso pelas mortes.A primeira hora focaliza os eventos que antecederam a entrada na arena, a colheita, a viagem de carruagem pela Capital, nossas notas no treinamento e nossas entrevistas. Há uma espécie de trilha sonora enaltecedora amparando as imagens que as torna duplamente horríveis porque, é claro, quase todos que aparecem na tela já estão mortos.Assim que chegamos à arena, há uma cobertura detalhada do banho de sangue e então os diretores basicamente alternam entre tomadas dos tributos morrendo e tomadas de nós dois. A maioria de Peeta, na verdade, é inegável que ele carregou nos ombros o negócio do romance.Agora vejo o que o público viu, como ele enganou os Carreiristas a meu respeito, permaneceu acordado a noite inteira embaixo da árvore das teleguiadas, lutou com Cato para que eu escapasse e, mesmo enquanto estava deitado na lama, sussurrou meu nome durante o sono. Comparada a ele, eu pareço uma desalmada – lançando bolas de fogo, deixando cair ninhos de vespas e explodindo suprimentos – até começar a rastrear Rue.Eles mostram sua morte integramente, o arremesso da lança, minha fracassada tentativa de resgate, minha flecha atravessando a garganta do garoto do Distrito 1, os últimos suspiros de Rue em meus braços. E a canção. Apareço cantando todas as notas da canção. Algo dentro de mim se fecha e fico insensível a tudo. É como assistir a pessoas totalmente estranhas em outra edição dos Jogos Vorazes. Mas reparo que eles omitem a parte em que a cubro de flores.Certo. Porque até isso tem cheiro de rebelião.As coisas melhoram para mim no momento em que eles anunciam que dois tributos do mesmo distrito podem ficar vivos e grito o nome de Peeta, e depois tapo a boca com a mão. Se pareci indiferente a ele antes, compenso agora, encontrando-o, cuidando para que ele volte a ter saúde, indo ao banquete em busca de medicamentos e sendo bastante liberal com os meus beijos.Objetivamente, consigo ver que as bestas e a morte de Cato são tão hediondas agora quanto antes, mas, ainda sim, é como se tudo isso estivesse acontecendo com pessoas que nunca vi na vida.Então chega o episódio das amoras. Posso ouvir o público pedindo silêncio, disposto a não perder nada. Uma onda de gratidão aos diretores do filme toma conta de mim quando vejo que eles terminam não com o anúncio de nossa vitória, mas comigo dando socos na porta de vidro do aerobarco, berrando por Peeta enquanto eles tentam ressuscitá-lo.Se tomarmos como base os critérios que garantirão minha sobrevivência a partir de agora, esse é o meu melhor momento em toda a noite.O hino está sendo tocado novamente e nós nos levantamos quando o Presidente Snow em pessoa sobe ao palco seguido de uma garotinha carregando uma almofada onde se vê uma coroa.Só há uma coroa, entretanto, e dá para ouvir a perplexidade da multidão – qual das cabeças receberá a coroa? – até que o Presidente Snow torce o objeto, separando-o em duas metades. Ele coloca a primeira metade na testa de Peeta com um sorriso. Ele ainda sorrindo quando coloca a segunda metade em minha cabeça, mas seus olhos, apenas alguns centímetros distantes dos meus, estão tão implacáveis quanto os de uma serpente.É ai que percebo que, muito embora nós dois tivéssemos a intenção de comer amoras, sou eu a culpada por ter tido a ideia. Eu sou a instigadora. Sou eu quem merece a punição.Muitas mesuras e saudações entusiasmadas se seguem. Meu braço está a ponto de cair de tanto acenar para a multidão quando Caesar Flickerman finalmente dá o boa-noite ao público, lembrando a todos que sintonizem amanhã para acompanhar as últimas entrevistas. Como se houvesse alternativa.Peeta e eu somos conduzidos até a mansão do Presidente para o Banquete da Vitória, onde temos muito pouco tempo para comer, já que funcionários da Capital e patrocinadores particularmente generosos acotovelam-se no caminho tentando tirar fotos conosco. Rostos e mais rostos resplandecentes despontam de todos os lados, cada vez mais embriagados à medida que a noite avança. Ocasionalmente, vislumbro Haymitch, o que é reconfortante, ou o Presidente Snow, o que é aterrorizante, mas continuo rindo e agradecendo as pessoas e sorrindo para as fotos. A única coisa que nunca faço é soltar a mão de Peeta.O sol está começando a surgir no horizonte quando nos dispersamos de volta ao décimo segundo andar do Centro de Treinamento. Imagino que agora vou poder finalmente conversar a sós com Peeta, mas Haymitch o manda ir com Portia arrumar alguma coisa apropriada para a entrevista e me acompanha pessoalmente até os meus aposentos.— Por que não posso falar com ele?  pergunto.— Vai ter tempo de sobra pra falar com ele quando a gente chegar em casa  Haymitch responde. — Você vai dormir, vai estar no ar às duas.Apesar da interferência apressada de Haymitch, estou determinada a ver Peeta privadamente. Depois de virar e revirar na cama por algumas horas, vou até o corredor. Meu primeiro pensamento é verificar o telhado, mas está vazio. Mesmo as ruas da cidade bem abaixo estão desertas após a celebração da noite de ontem. Volto para a cama por um tempo e então decido ir diretamente ao quarto dele, mas quando tento girar a maçaneta, descubro que a porta do meu quarto foi trancada pelo lado de fora. Suspeito de Haymitch, a princípio, mas sinto um temor muito mais insidioso de que a Capital possa estar nos monitorando e nos confinando. Estou impossibilitada de escapar desde que e os Jogos Vorazes começaram, mas isso aqui é diferente, muito mais pessoal. Isso aqui me dá a sensação de que fui aprisionada por um crime e que estou aguardando a sentença.Volto rapidamente para a cama e finjo dormir até que Effie Trinket aparece para me alertar para o começo de mais um ”grande, grande, grande dia!”Tenho mais ou menos cinco minutos para comer uma tigela de cereal antes da chegada da equipe de preparação. Tudo o que tenho de dizer é: “A multidão adorou vocês!” e é desnecessário falar pelas próximas horas. Quando Cinna aparece, ele dispensa todo mundo e me dá um vestido branco bem extravagante e sapatos cor-de-rosa. Em seguida, ajusta pessoalmente minha maquiagem até parecer que estou irradiando um brilho suave e rosado. Ficamos conversando, mas estou com medo de perguntar a ele alguma coisa realmente importante porque, depois do incidente da porta, não posso me livrar da sensação de estar sendo constantemente observada.A entrevista acontece na sala de estar ao fim do corredor. Um espaço foi reservado e o sofá do amor está agora em outra posição e cercado de vasos com flores vermelhas e rosas. Só há um punhado de câmeras para registrar o evento. Pelo menos não há plateia no local.Caesar Flickerman me dá um abraço afetuoso quando adentro o local.— Congratulações, Katniss. Como está?— Bem. Nervosa com a entrevista  respondo.— Não fique. Será uma experiência agradabilíssima  diz ele, dando um tapinha encorajador em minha bochecha.— Não sou muito boa em falar sobre mim mesma.— Você não cometerá nenhum deslize  ele diz.E penso, Oh, Caesar, se ao menos isso fosse verdade. A verdade é que o Presidente Snow deve estar preparando alguma espécie de “acidente” para mim enquanto estivermos conversando.Então, Peeta aparece, vistoso em vermelho e branco, puxando-me para o lado.— Quase não consigo te ver. Haymitch parece empenhado em manter a gente afastado.Haymitch, na verdade, está emprenhado em nos manter vivos, mas há ouvidos demais nos escutando, de modo que digo apenas:— É mesmo, ele tem estado muito responsável ultimamente.— Bem, só falta essa entrevista e voltamos pra casa. Aí ele não mais poder ficar vigiando a gente o tempo todo.Sinto uma espécie de arrepio percorrendo-me o corpo e não disponho de tempo para analisar o motivo, porque eles já estão à nossa espera. Nós nos sentamos no sofá do amor com uma certa formalidade, mas Caesar diz:— Ah, vamos lá, pode se enroscar nele se quiser. Fica muito bonitinho.Então, levanto os pés e Peeta me puxa para perto dele.Alguém faz a contagem regressiva e, num átimo, nós estamos sendo transmitidos ao vivo para todo o país. Caesar Flickerman é maravilhoso, implica, faz piada, se engasga quando a ocasião é propícia. Ele e Peeta já possuem a cumplicidade que estabeleceram naquela noite da primeira entrevista, aquele estado de espírito alegre, então, eu apenas sorrio bastante e tento falar o menos possível. Enfim, tenho de falar um pouco, mas, sempre que posso, redireciono a conversa para Peeta.Mas chega um momento em que Caesar começa a colocar questões que demandam respostas completas.— Bem, Peeta, sabemos, pelos dias que passamos naquela caverna, que foi amor à primeira vista de sua parte desde quando, os cinco anos de idade? — Caesar pergunta.— Desde o momento que pus os olhos nela pela primeira vez  diz Peeta.— Mas, Katniss, que coisa, hein? Imagino que a parte mais excitante para o público tenha sido assistir a você cedendo ao encantos dele. Quando você se deu conta de que estava apaixonada por ele?  pergunta Caesar.— Hum, essa é difícil...Dou um risinho leve e olho para as minhas mãos. Socorro.— Bem, eu sei quando a coisa me tocou. Na noite em que você gritou o nome dele daquela árvore  diz Caesar.Obrigada Caesar!, penso comigo mesma, e desenvolvo a ideia.— Foi mesmo, acho que foi lá. É o seguinte, até aquele momento, simplesmente tentava não pensar quais poderiam ser os meus sentimentos, falando com toda honestidade, porque a coisa toda era muito confusa e imaginar que eu realmente sentia alguma coisa por ele só pioraria tudo ainda mais. Mas aí, naquela árvore, tudo mudou.— Por que você acha que isso aconteceu? — Caesar demanda.— Talvez... porque pela primeira vez... haveria uma chance de eu ficar perto dele digo.Atrás do cameraman, vejo Haymitch dando uma espécie de rosnado de alívio e sei que fiz a coisa certa. Caesar pega um lenço e precisa de um tempo porque está emocionado demais. Sinto Peeta pressionando a testa na minha têmpora e em seguida perguntando:— Então, agora que estou perto de você, o que é que você vai fazer comigo?Volto-me para ele e respondo:— Vou te colocar em algum lugar onde você não possa se machucar.E, quando ele me beija, as pessoas da sala dão um suspiro.Para Caesar, esse é o momento natural para engatar a conversa com todas as formas de ferimentos de que fomos vítimas na arena, queimaduras, ferroadas e perfurações as mais diversas. Mas só esqueço que estou na frente das câmeras quando o assunto passa a ser as bestas. E quando Caesar pergunta a Peeta como sua “nova perna” está funcionando.— Nova perna?  E não consigo evitar levantar a barra da calça de Peeta. — Oh, não sussurro, tocando o equipamento de metal e plástico que substituiu a carne.— Ninguém contou pra você? — Caesar pergunta, delicadamente.Balanço a cabeça.— Eu não tive oportunidade  Peeta conta, dando ligeiramente de ombros.— É minha culpa  digo. — Porque usei aquele torniquete.— Sim, é culpa sua eu estar vivo  diz Peeta.— Ele tem razão  Caesar concorda. — Ele certamente teria sangrado até morrer se não fosse por isso.Imagino que isso seja verdade, mas não consigo deixar de me sentir chateada com relação a isso, a ponto de sentir vontade de chorar, mas aí lembro que todo o país está me assistindo, então, simplesmente enterro meu rosto na camisa de Peeta. Eles levam alguns minutos para me convencer a tirar o rosto da camisa porque lá é bem mais confortável, ninguém pode me ver. E quando reapareço, Caesar para um pouco de me fazer perguntas para que eu tenha tempo de me recuperar. Na realidade, ele me deixa em paz até o episódio das amoras.— Katniss, sei que você acabou de ter um choque, mas sou obrigado a perguntar. No momento em que você pegou aquelas amoras, o que se passava em sua cabeça?Faço uma longa pausa antes de responder, tentando organizar meus pensamentos. Esse é o momento crucial, que decidirá se desafiei mesmo a Capital ou fiquei tão louca com a perspectiva de perder Peeta que não posso ser responsabilizada por minhas ações. O incidente parece clamar por um grande e dramático discurso, mas tudo o que sai da minha boca é uma frase quase inaudível:— Não sei, eu simplesmente... não consegui suportar a ideia de... viver sem ele...— Peeta? Alguma coisa a acrescentar?  pergunta Caesar.— Não, acho que isso serve para nós dois  diz.Caesar faz um sinal e a entrevista se encerra. Todos estão rindo e chorando e se abraçando, mas ainda não tenho certeza até alcançar Haymitch.— Foi bom? — sussurro.— Perfeito  responde ele.Volto ao quarto para pegar algumas coisas e descubro que não há nada a ser pego a não ser o broche com o mockingjay que Madge me deu. Alguém o devolveu em meu quarto depois dos Jogos. Eles nos conduzem pelas ruas em um carro de janelas escuras, e o trem está esperando por nós. Quase não temos tempo de nos despedir de Cinna e Portia, mas teremos de nos encontrar daqui a alguns meses, quando faremos a turnê pelos distritos para participarmos de várias cerimônias de comemoração pela vitória. É a maneira de a Capital lembrar às pessoas que os Jogos Vorazes nunca se encerram de fato. Nós recebemos várias medalhas inúteis e todos terão de fingir que nos amam.O trem começa a se mover e nós mergulhamos na noite até ultrapassarmos o túnel, quando consigo respirar livremente pela primeira vez desde a colheita. Effie está nos acompanhando, assim como Haymitch, é claro.Nós começamos um farto jantar e nos sentamos em silêncio em frente à televisão para assistir à reprise da entrevista. Com a Capital a cada segundo mais distante de nós, começo a pensar na minha casa. Em Prim e em minha mãe. Em Gale.Peço licença para trocar o vestido por uma calça e uma camisa simples. À medida que retiro lenta e cuidadosamente minha maquiagem do rosto e prendo os cabelos, começo a me transformar novamente em mim mesma. Katniss Everdeen. Uma garota que mora na Costura. Caça na Floresta. Negocia no Prego.Miro o espelho enquanto tento lembrar quem sou e quem não sou. Quando reencontro, a pressão do braço de Peeta em meus ombros já parece bem distante de mim.Quando o trem faz uma breve parada para reabastecer, nos é permitido sair para tomar um pouco de ar fresco. Não há mais nenhuma necessidade de sermos vigiados. Peeta e eu caminhamos ao longo do trilho, de mãos dadas, e não consigo achar nada para dizer, agora que estamos sozinhos. Ele para para colher um maço de flores silvestres para mim. Quando ele me entrega, faço um grande esforço para parecer satisfeita. Porque ele não tem como saber que as flores rosas e brancas são a cobertura das cebolas selvagens e só me fazem lembrar das horas que passei colhendo-as na companhia de Gale.Gale. A perspectiva de encontrar Gale em questão de horas faz meu estômago revirar. Mas por quê? Não consigo enquadrar bem a coisa em minha mente. Só sei que é como se estivesse mentindo para alguém que confia em mim. Ou mais precisamente, para duas pessoas. Estive me esquivando disso até agora por causa dos Jogos. Mas lá em casa não haverá Jogos atrás dos quais poderei me esconder.— Algum problema?  Peeta pergunta.— Nada  respondo.Nós continuamos a caminhada até o fim do trem, até onde tenho certeza quase absoluta de que não há nenhuma câmera escondida nos arbustos rasteiros que margeiam o trilho. Ainda assim nenhuma palavra me escapa da boca.Haymitch me assusta ao colocar a mão em minhas costas. Até agora, no meio do nada, ele mantém o tom de voz baixo.— Excelente trabalho, vocês dois. Basta manter o ritmo no distrito até que as câmeras desapareçam. A gente vai se dar bem.Observo-o retornar ao trem, evitando os olhos de Peeta.— O que ele quis dizer? — pergunta Peeta.— É a Capital. Eles não gostaram da nossa armação com as amoras  solto.— O quê? Do que você está falando?— A coisa pareceu rebelde demais. Aí Haymitch tem me orientado nos últimos dias para eu não piorar tudo.— Orientado você? Mas não a mim  diz ele.— Ele sabia que você era suficientemente esperto para proceder da maneira correta.— Eu não sabia que havia algum motivo pra proceder de maneira correta  diz Peeta.— Então, o que você está dizendo é que, nesses últimos dias e também eu acho que... lá na arena... aquilo não passou de uma estratégia que vocês dois bolaram?— Não, eu nem conseguia conversar com ele na arena, não lembra?  insisto.— Não. Você sabia o que ele queria que você fizesse, não sabia?Mordo o lábio.— Katniss?Ele solta a minha mão e eu dou um passo à frente, como se estivesse tentando me equilibrar.— As suas atitudes foram todas em função dos Jogos  Peeta revela.— Nem todas  retruco, segurando minha flores com força.— Então quais foram e quais não foram? Não, não. Esquece isso. Aposto que a verdadeira questão é o que vai sobrar quando a gente chegar em casa.— Não sei. Quanto mais a gente se aproxima do Distrito 12, mais confusa eu fico.Ele espera mais alguma explicação, mas nada acontece.— Bem, me avisa quando você tiver alguma resposta  diz ele, e a dor em sua voz é perceptível.Sei que meus ouvidos estão curados porque, mesmo com o barulho do motor, consigo escutar todos os passos que ele dá de volta ao trem. No momento em que subo a bordo, Peeta já está em seu quarto para passar a noite. Também não o vejo na manhã seguinte. Na realidade, ele só reaparece quando estamos entrando no Distrito 12. Ele acena com a cabeça para mim, o rosto inexpressivo.Quero dizer a ele que sua atitude não é justa. Que nós éramos estranhos. Que fiz o que era preciso para permanecer viva, para que nós dois permanecêssemos vivos na arena. Que não tenho como explicar como são as coisas com Gale porque não conheço nem a mim mesma. Que não é uma boa ideia me amar porque nunca vou me casar mesmo e ele ia acabar me odiando mais cedo ou mais tarde. Que não importa se tenho algum sentimento por ele, porque jamais serei capaz de proporcionar o tipo de amor que se transforma em uma família, em filhos. E como ele será capaz? Como ele será capaz depois de tudo o que passamos naquela arena? Também quero dizer a ele o quanto já estou sentindo a sua falta. Mas isso não seria justo de minha parte.Então, apenas ficamos parados em silêncio, observando nossa pequena e encardida estação crescer à nossa volta. Pela janela, vejo que a plataforma está repleta de câmeras. Todos devem estar assistindo ansiosamente à nossa volta para casa.Com o canto do olho, vejo Peeta estender a mão. Olho para ele, sem muita certeza.— Uma última vez? Para o público?  diz ele.Sua voz não está zangada, o que é pior. O garoto do pão já está me escapando.Pego sua mão, segurando com firmeza, preparando-me para as câmeras e abominando o momento que finalmente terei que soltá-la.

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