terça-feira, 24 de setembro de 2013

Em chamas - capitulo 2




Na minha mente, Presidente Snow deveria ser visto na frente de grandes pilares de mármore com bandeiras de tamanho exagerados. É assustador vê-lo rodeado por objetos ordinários na sala. É como tirar a tampa de uma panela e encontrar uma víbora em vez do guisado.O que ele poderia estar fazendo aqui? Minha mente volta para o dia de abertura de outros Tours da Vitória. Eu me lembro de ver os tributos vencedores com seus mentores e estilistas. Até alguns altos funcionários do governo fazem aparições ocasionalmente. Mas eu nunca tinha visto o Presidente Snow. Ele está presente em celebrações na Capital. Ponto.Se ele fez a viagem por todo caminho de sua cidade, só pode significar uma coisa. Estou em sérios problemas. E se eu estou, minha família também está. Um arrepio corre por mim quando penso o quanto esse homem que me despreza está próximo da minha mãe e irmã. Sempre vai me desprezar. Porque eu superei seus sádicos Jogos Vorazes, fiz a Capital de tola, e consequentemente questionei seu controle.Tudo que eu estava fazendo era tentar manter Peeta e eu vivos. Qualquer ato de rebelião foi puramente acidental. Mas quando a Capital decreta que apenas um tributo pode viver e você tem a audácia de desafiá-la, acho que isso por si só é uma rebelião. Minha única defesa foi fingir que estava louca de amor por Peeta. Então ambos fomos autorizados a viver. Para sermos vencedores coroados. Para ir para casa, celebrar e acenar adeus para as câmeras e sermos deixados sozinhos. Até agora.Talvez fosse a casa nova ou o choque de vê-lo ou o mútuo entendimento de que ele podia ter me matado em um segundo que me faz sentir como uma intrusa. Como se essa fosse a casa dele e eu a parte não convidada.Não lhe dou boas vindas ou lhe ofereço uma cadeira. Não digo nada. Na verdade, trato-o como se ele fosse uma cobra de verdade, do tipo venenoso. Eu fico parada, meus olhos presos aos dele, considerando planos de retirada.— Acho que vamos deixar toda a situação muito mais simples concordando em não mentir um para o outro — diz. — O que você acha?
Acho que minha língua está congelada e falar será impossível, me surpreendo ao responder num tom firme.— Sim, acho que ganharíamos tempo.
Presidente Snow sorri e noto seus lábios pela primeira vez. Estou esperando lábios de cobra, o que quer dizer nenhum. Mas os deles são bem cheios, a pele bem esticada. Eu tenho de me perguntar se sua boca foi alterada para deixá-lo mais atraente. Se assim for, foi uma perda de tempo e dinheiro, porque ele não é nem um pouco atraente.— Meus assessores estavam preocupados com a possibilidade de você ser difícil, mas você não está planejando isso, está?
— Não.
— Foi o que eu disse a eles. Eu disse que qualquer garota que vai tão longe para preservar sua vida não vai estar interessada em jogá-la fora com as próprias mãos. E então há sua família a se pensar. Sua mãe, irmã e todos aqueles... primos.
Pelo modo como ele prolonga a palavra “primos” posso dizer que ele sabe que Gale e eu não dividimos a mesma árvore genealógica.Bem, as cartas estão na mesa agora. Talvez assim seja melhor. Eu não sou boa em teatros ambíguos. Prefiro saber como vai a partida.— Vamos nos sentar.
Presidente Snow toma um assento a grande mesa de madeira polida onde Prim faz seu trabalho de casa e minha mãe seu orçamento. Como nossa casa, esse é um lugar onde ele não tem direito, mas no final das contas, todo direito de ocupar.Me sento defronte à mesa numa cadeira reta e esculpida. Foi feita para alguém mais alto do que eu, meus pés mal tocam o chão.— Eu tenho um problema, Srta. Everdeen — Presidente Snow começa. — Um problema que começa no momento em que você tirou aquelas bagas venenosas na arena.
Aquele foi o momento em que eu pensei que se os Gamemakers tinham de escolher entre ver Peeta e eu cometer suicídio – o que significaria não ter vencedor – e deixar nós dois vivos, eles iriam preferir a última opção.— Se o Gamemaker-Chefe, Seneca Crane, tivesse algum cérebro, ele teria explodido vocês na mesma hora. Mas ele tinha uma infeliz tendência sentimental. Então aqui está você. Pode imaginar onde ele está?
Assinto, porque, pelo modo como ele fala, está claro que Seneca Crane foi executado. O cheiro de rosas e sangue fica mais forte agora que apenas uma mesa nos separa. Há uma rosa na lapela da roupa do Presidente Snow, o que ao menos sugere uma fonte do perfume de flores, mas deve ter sido geneticamente modificada, porque nenhuma rosa de verdade exala um cheiro assim. E quanto ao sangue... eu não sei.— Depois daquilo, não havia nada a fazer além de te deixar fazer sua pequena atuação. E você foi muito boa, também, com o papel da garota de escola louca de amores. As pessoas na Capital se deixaram levar facilmente. Infelizmente, nem todos nos distritos caíram na sua atuação.
Meu rosto deve ter registrado pelo menos uma centelha de confusão, porque ele explica.— Isso, é claro, não é do seu conhecimento. Você não tem acesso a informações sobre o humor nos outros distritos. Em alguns deles, entretanto, as pessoas viram seu pequeno truque com as bagas como um ato de desafio, não um ato de amor. E se uma garota do Distrito Doze, de todos os lugares, pode desafiar a Capital e sair ilesa, o que pode impedi-los de fazer o mesmo? — ele diz. — O que pode evitar, digamos, uma revolta?
Leva um momento para que eu compreenda sua última frase. Então todo o peso cai sobre mim.— Houve revoltas? — pergunto, arrepiada e de algum modo feliz com a possibilidade.
— Não ainda. Mas vai acontecer se o curso das coisas não mudar. E revoltas são conhecidas por conduzir à revolução.
O presidente Snow esfrega um ponto sobre sua sobrancelha esquerda, o ponto onde eu mesma tenho dores de cabeça.— Você tem ideia do que isso significaria? Quantas pessoas morreriam? Quais condições as que vivem devem encarar? Quaisquer que sejam os problemas que qualquer um tem com a Capital, acredite em mim quando digo que, se o controle sobre os distritos ficar frouxo, todo o sistema entrará em colapso.
Estou surpresa com a franqueza e até sinceridade na sua fala. Como se seu interesse primário fosse o bem estar dos cidadãos de Panem, quando nada poderia ser mais longe da verdade. Eu não sei como ouso dizer as próximas palavras, mas eu digo.— Deve ser muito frágil, se um punhado de bagas pode acabar com ele.
Há uma longa pausa na qual ele me examina. Então ele simplesmente responde:— É frágil, mas não como você supõe.
Há uma batida na porta, e o homem da Capital coloca sua cabeça para dentro.— A mãe dela quer saber se querem chá.
— Eu gostaria. Eu gostaria de chá — responde o presidente.
A porta se abre mais, e lá está minha mãe, segurando uma bandeja com o jogo de chá chinês que ela trouxe para a Costura quando se casou.— Coloque aqui, por favor.
Ele coloca o seu livro no canto da mesa e dá uma tapinha no centro.Minha mãe coloca o jogo de chá na mesa. Há um bule e xícaras de porcelana, creme, açúcar e um prato de biscoitos. Elas estão cobertas por flores de cores suaves. Um trabalho que só poderia ser feito por Peeta.— Que visão bem-vinda. Sabe, é engraçado como frequentemente as pessoas se esquecem de que presidentes precisam comer, também — presidente Snow diz com charme.
Bem, para relaxar minha mãe um pouco, de qualquer forma.— Posso conseguir algo mais? Posso cozinhar algo mais substancial se estiver com fome — ela oferece.
— Não, não poderia ser mais perfeito. Obrigado — ele responde, claramente a dispensando.
Minha mãe assente, lança-me um olhar, e vai embora. Presidente Snow serve chá para nós dois e preenche o dele com creme e açúcar, depois leva um longo tempo misturando. Pressinto que ele falou o que queria e está esperando que eu responda.— Eu não quis começar nenhuma revolta — digo a ele.
— Acredito em você. Isso não importa. Seu estilista revelou-se profético na escolha do seu vestuário. Katniss Everdeen, a garota em chamas, você pode fornecer uma fagulha que, deixada de lado, pode crescer em um inferno que destrói Panem.
— Por que você apenas não me mata agora? — solto.
— Publicidade? — ele pergunta. — Isso apenas acrescentaria combustível às chamas.
— Arranje um acidente, então.
— Quem acreditaria? Não você, se estivesse observando.
— Então apenas me diga o que você quer que eu faça. Eu farei.
— Se fosse assim tão simples. — Ele pega um dos biscoitos floridos e o examina. —Bonito. Sua mãe fez esses?
— Peeta.
E pela primeira vez, não consigo encarar seu olhar. Estendo a mão para meu chá, mas volto atrás quando ouço a xícara chacoalhando contra o pires. Para disfarçar, rapidamente pego um biscoito.— Peeta. Como está o amor da sua vida? — ele pergunta.
— Bem.
— Em que ponto ele percebeu o grau exato da sua indiferença? — ele pergunta, mergulhando seu biscoito no chá.
— Não sou indiferente.
— Mas talvez não caída de amores pelo jovem como levou o país acreditar.
— Quem disse que não estou?
— Eu — o presidente rebate. — E eu não estaria aqui se eu fosse a única pessoa que tivesse dúvidas. Como está o primo atraente?
— Eu não sei... eu não...
Minha revolta com essa conversa, com a discussão de meus sentimentos por duas pessoas com as quais eu mais me importo com Presidente Snow, me choca.— Fale, Srta Everdeen. Eu posso facilmente matá-lo se não chegarmos a uma solução feliz. Você não está fazendo um favor a ele desaparecendo na floresta com ele todo domingo.
Se ele sabe disso, o que mais ele sabe? E como ele sabe? Muitas pessoas poderiam lhe dizer que Gale e eu passamos nossos domingos caçando. Não aparecemos no final do dia carregados de caças? Não fizemos isso por anos? A pergunta real é o que ele pensa que acontece na floresta além do Distrito 12. Claramente eles não no seguiram até lá? Ou seguiram? Nós poderíamos ter sido seguidos? Isso parece impossível. Ao menos por pessoas. Câmeras? Isso nunca atravessou minha cabeça até esse momento. A floresta sempre foi nosso lugar de segurança, nosso lugar além do alcance da Capital, onde estamos livres para dizer o que sentimos, ser o que somos. Ao menos antes dos Jogos. Se nós fomos observados, o que eles viram? Duas pessoas caçando, dizendo coisas traiçoeiras contra a Capital, sim. Mas não duas pessoas apaixonadas, o que parecer ser a implicação de Presidente Snow. Estamos salvos nesse quesito. A menos... a menos...Aconteceu uma vez, apenas. Foi rápido e inesperado, mas aconteceu.Depois que Peeta e eu chegamos dos Jogos, passaram-se algumas semanas antes de eu ver Gale sozinha. Primeiro houve as celebrações obrigatórias. Um banquete para os vencedores que apenas pessoas da mais alta classe compareceriam da Capital.O Dia da Parcela, o primeiro de doze, nos quais pacotes de comidas eram entregues para cada pessoa do distrito. Esse foi o meu favorito. Ver todas aquelas crianças famintas da Costura correndo, acenando com latas de molho de maçã, carne e até doces. Em casa, grandes demais para carregar, estariam sacas de grãos e latas de óleo. Saber que uma vez por mês, por um ano, todos eles receberiam outra parcela. Essa foi uma das poucas vezes em que me senti bem por ter ganhado os Jogos.Então, entre as cerimônias, eventos e documentários sobre cada passo meu, enquanto eu dirigia, agradecia e beijava Peeta para a audiência, não tive nenhuma privacidade. Depois de algumas semanas, as coisas finalmente se acalmaram. Grupos de câmeras e repórteres foram para casa. Peeta e eu assumimos um relacionamento que temos desde então. Minha família se estabeleceu na nossa casa na Vila dos Vitoriosos. A vida cotidiana do Distrito 12 – trabalhadores nas minas, crianças nas escolas – voltou ao normal. Esperei até que achei que estava tudo limpo, e então, num domingo, sem dizer a ninguém, levantei-me horas antes do amanhecer e fui para a floresta.O clima era quente o bastante para que eu não precisasse de uma jaqueta. Coloquei na bolsa comidas especiais, frango frio, queijo, pães e laranjas. Descendo para minha casa antiga, coloquei minhas botas de caça. Como sempre, a cerca não tinha mudado e era simples deslizar floresta adentro e reaver meus arco e flechas. Fui para o nosso lugar, do Gale e meu, onde tínhamos dividido café da manhã no dia da Colheita que me mandou para os Jogos.Esperei pelo menos duas horas. Tinha começado a pensar que ele tinha desistido de mim nas semanas que se passaram. Ou que ele não se importava mais comigo. Que até me odiava. E a ideia de perdê-lo para sempre, meu melhor amigo, a única pessoa em que confiei meus segredos, era tão dolorosa que não podia suportar. Não acima de tudo que aconteceu. Eu podia sentir meus olhos se enchendo de lágrimas e minha garganta começando a se apertar como sempre acontece quando fico abalada.Então olhei para cima e ele estava ali, a três metros de distância, me observando. Sem mesmo pensar, me levantei e atirei meus braços ao redor dele, fazendo algum som estranho que combinava riso, sufoco e choro. Ele me abraçou com tanta força que eu não pude ver seu rosto, mas só depois de um longo tempo que ele me soltou e então ele não teve muita escolha, porque eu tinha tido essa crise inacreditável de soluços e tinha de beber água.Fizemos o que sempre fizemos naquele dia. Tomamos café da manhã. Caçamos, pescamos e recolhemos plantas. Conversamos sobre as pessoas na cidade. Não sobre nós, sua nova vida nas minas, meu tempo na arena. Só sobre outras coisas. Quando chegamos ao buraco da cerca que era próxima ao Prego, acho que eu realmente acreditei que as coisas poderiam voltar a ser as mesmas. Que nós podíamos continuar como sempre. Eu tinha dado toda a caça a Gale, dado que nós tínhamos tanta comida agora. Disse a ele que não iria ao Prego, embora eu estivesse querendo ir lá, porque minha mãe e minha irmã nem sabiam que eu tinha ido caçar e deviam estar se perguntando onde eu estava. Então, de repente, enquanto eu estava sugerindo fazer a caça todos os dias, ele tomou meu rosto em suas mãos e me beijou.Eu estava completamente despreparada. Você pode pensar que depois de todas as horas que eu tinha passado com Gale – observando-o conversar, rir, e franzir o cenho – que eu conheceria tudo sobre aqueles lábios. Mas eu não tinha imaginado como eles seriam quentes pressionados contra os meus. Ou como aquelas mãos, que poderiam criar as armadilhas mais intricadas, poderiam facilmente me prender. Acho que fiz algum tipo de barulho com a minha garganta, e vagamente lembro-me dos meus dedos presos fortemente contra seu peito. Então ele me soltou e disse:— Eu tinha de fazer isso. Pelo menos uma vez.
E se foi.Apesar do fato de o sol estar baixando e minha família pudesse ficar preocupada, eu fiquei numa árvore próxima a cerca. Tentei decidir como eu me sentia com aquele beijo, se eu tinha gostado ou me ressentia, mas tudo que eu me lembrava era da pressão dos lábios de Gale e do cheiro de laranjas que ainda estava em sua pele. Era inútil compará-lo com os muitos beijos que troquei com Peeta. Eu ainda não sabia se algum deles contava. Finalmente fui para casa.Naquela semana eu fiz armadilhas e deixei a carne com Hazelle. Eu não vi Gale até domingo. Eu tinha toda uma fala pronta, sobre como eu não queria um namorado e nunca planejei casar, mas acabei nem a usando. Gale agiu como se o beijo nunca tivesse acontecido.Talvez ele estivesse esperando que eu dissesse algo. Ou o beijasse de volta. Em vez disso, apenas fingi que nada tinha acontecido, também. Mas tinha. Gale tinha quebrado uma barreira entre nós e, com isso, qualquer esperança que eu tinha de reassumir nossa velha e descomplicada amizade. Mesmo que eu fingisse, eu nunca poderia olhar para os lábios dele da mesma forma.Todos esses vislumbres passaram pela minha cabeça em um instante quando os olhos do Presidente Snow me deixaram consciente da sua ameaça de matar Gale. Como eu fui estúpida por pensar que a Capital iria apenas me ignorar depois de eu retornar para casa. Talvez eu não soubesse sobre as revoltas em potencial. Mas eu sabia que eles estavam irritados comigo. Em vez de agir com a extrema cautela da qual a situação necessitava, o que eu fiz? Do ponto de vista do presidente, eu ignorei Peeta e expus uma preferência pela companhia de Gale diante de todo distrito. E fazer isso deixou claro que eu estava, de fato, zombando a Capital. Agora eu pus em risco Gale e sua família, minha família e Peeta, também, por causa do meu descuido.— Por favor, não machuque Gale — sussurro. — Ele é apenas meu amigo. Ele tem sido meu amigo por anos. Isso é tudo que há entre nós. Além disso, todo mundo pensa que nós somos primos agora.
— Eu estou apenas interessado em como isso afeta sua dinâmica com Peeta, e consequentemente afeta o humor nos distritos.
— Será o mesmo no Tour. Eu estarei apaixonada por ele como sempre estive.
— Como você está — corrige Presidente Snow.
— Como eu estou — confirmo.
— Só que você tem de se esforçar para que as revoltas sejam evitadas — ele continua. — Esse Tour será sua única chance de virar o jogo.
— Eu sei. Eu vou. Vou convencer todos nos distritos de que eu não estava desafiando a Capital, de que eu estava loucamente apaixonada.
Presidente Snow se levanta e passa um guardanapo nos seus lábios inchados.— Mire mais alto se não quiser falhar.
— O que você quer dizer? Como eu posso mirar mais alto? — pergunto.
— Me convença.
Ele deixa cair o guardanapo e retoma seu livro. Não o observo enquanto ele caminha para a porta, então eu me contraio quando ele sussurra no meu ouvido.— A propósito, eu sei sobre o beijo.
Então a porta se fecha atrás dele.

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