segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Os arquivos do semideus - Percy Jackson e a Espada de Hades

Percy Jackson e a Espada de Hades


Passar o Natal no Mundo Inferior NÃO estava nos meus planos. Se soubesse o que estava por vir, teria inventado uma doença qualquer. Poderia ter enfrentado um exército de demônios, uma luta com um titã ou uma cilada que quase lançou a mim e aos meus amigos na escuridão eterna. Mas não, eu tinha que fazer a minha prova idiota de inglês. Então lá estava eu, no último dia do semestre de inverno na Goode High School, sentado no auditório com todos os outros calouros e tentando terminar a minha redação eu-não-li-o-livro-mas-estou-fingindo-que-li sobre Um conto de duas cidades, quando a sra. O´Leary surgiu no palco, latindo loucamente.

A sra. O´Leary é meu cão infernal de estimação. Ela é um monstro preto e peludo do tamanho de uma caminhonete Hummer com caninos afiados, garras cortantes como aço e olhos vermelhos brilhantes. Ela é realmente doce, mas em geral fica no Acampamento Meio-Sangue, o lugar para o treinamento de semideuses.

Eu estava um tanto surpreso de vê-la no palco andando por entre as árvores de Natal, os duendes do Papai Noel e o restante do cenário da peça de fim de ano. Todo mundo levantou os olhos para ver. Eu estava certo de que as outras crianças entrariam em pânico e correriam para a saída, mas apenas começaram a cochichar e a rir. Algumas garotas disseram “Ownnn, fofinha!”.

Nosso professor de inglês, o dr. Boring (não estou brincando, o significado é “chato” e esse é o nome dele), ajeitou os óculos e franziu o cenho.

— Tudo bem — começou ele — de quem é o poodle?

Suspirei aliviado, agradecendo aos deuses pela Névoa – o véu mágico que impede os humanos de verem as coisas como realmente são. Eu já a tinha visto distorcer a realidade muitas vezes, mas a sra. O´Leary como um poodle? Essa foi impressionante.

— Hum, é meu senhor — respondi em voz alta. — Desculpe! Ela deve ter me seguido.

Alguém atrás de mim começou a assobiar “Mary tinha um carneirinho”. Mais crianças aderiram ao coro.

— Chega! — interrompeu o dr. Boring, rispidamente — Percy Jackson, essa é uma prova final. Não posso ter poodles...

AU!

O latido da sra. O´Leary sacudiu o auditório. Ela abanou o rabo, derrubando alguns duendes. Então, inclinou-se sobre as patas dianteiras e me encarou como se quisesse que eu a seguisse.

— Vou tirá-la daqui dr. Boring — prometi — eu já terminei mesmo.

Fechei meu caderno de respostas e corri para o palco. A sra. O´Leary se dirigiu para a saída e eu a segui enquanto as outras crianças ainda riam e gritavam pelas minhas costas:

― Até mais, menino poodle!


***


A sra. O´Leary correu pela rua 81 Leste em direção ao rio.

— Devagar! — gritei. — Aonde você está indo?

Recebi alguns olhares estranhos dos pedestres, mas estávamos em Nova York, e, afinal um garoto perseguindo um poodle provavelmente não era a coisa mais esquisita que eles já tinham visto.

A sra. O´Leary se manteve bem a minha frente, e se virou para latir de vez em quando como se dissesse: Mexa-se, lesma! Ela correu três quadras para o norte, direto para dentro do parque Carl Schurz. Quando eu a alcancei, ela saltou uma cerca de ferro e desapareceu numa enorme parede de arbustos podados cobertos de neve.

— Ei vamos lá! — reclamei.

Eu não havia tido a chance de pegar o meu casaco na escola. Já estava morrendo de frio, mas escalei a cerca e mergulhei na moita congelada. Do outro lado havia uma clareira: uns dois quilômetros de quadrados de grama congelada circundada por árvores sem folhas. A sra. O´Leary cheirava o entorno, balançando a cauda loucamente. Não percebi nada fora do comum. A minha frente o Rio East, cor de aço, fluía preguiçosamente. Nuvens de fumaça branca saíam do telhado no Queens. Atrás de mim, o Upper east Side se destacava frio e silencioso.

Eu não tinha certeza do porque, mas minha nuca começou a formigar. Peguei minha caneta esferográfica e a destampei. Imediatamente, ela aumentou de tamanho até virar minha espada de bronze. Contracorrente. Sua lâmina reluzia fracamente na luz do inverno. A sra. O´Leary levantou a cabeça. Suas narinas tremeram.

— O que foi garota? — sussurrei.

Os arbustos farfalharam e um cervo dourado surgiu entre eles. Quando eu digo dourado, não quero dizer amarelo. Aquela coisa tinha o pelo metálico e chifres que pareciam genuínos catorze quilates. Ele emitia uma aura de luz dourada, quase brilhante demais para se olhar diretamente. Era provavelmente a coisa mais bonita que eu já tinha visto. A sra. O´Leary lambeu os beiços como se estivesse pensando hambúrguer de cevo!

Então, os arbustos farfalharam de novo e uma figura encapuzada saltou para a clareira, uma flecha engatada em seu arco. Levantei minha espada. A garota mirou em mim, depois parou.

— Percy?

Ela jogou para trás o capuz prateado de sua capa. Seus cabelos negros estavam mais longos do que eu lembrava, mas eu conhecia aqueles brilhantes olhos azuis e a fita prateada que a marcava como a primeira-tenente de Ártemis.

— Thalia! — exclamei. — O que está fazendo aqui?

— Seguindo o cervo dourado — ela respondeu, como se isso fosse óbvio. — É o animal sagrado de Ártemis. Entendi que era algum tipo de sinal. E, hum... — ela indicou a sra. O´Leary com a cabeça, nervosa. — Você quer me dizer o que aquilo está fazendo aqui?

— Aquilo é meu bicho de estimação. Sra. O´Leary, não!

A Sra. O´Leary estava cheirando o cervo, invadindo completamente o seu espaço. O cervo tocou o cão infernal no nariz. Logo em seguida, os dois estavam brincando de um estranho jogo de pega-pega pela clareira.

— Percy — Thalia franziu o cenho — Isso não pode ser uma coincidência. Você e eu no mesmo lugar e ao mesmo tempo?

Ela estava certa. Semideuses não viviam de coincidências, Thalia era uma boa amiga, mas eu não a via fazia um ano, e agora, de repente, ali estávamos nós.

— Algum deus está aprontando com a gente — sugeri.

— Provavelmente.

— Bom ver você, mesmo assim.

Ela sorriu de má vontade.

— Tá. Se sairmos dessa inteiros, pago um cheeseburguer para você. Como está Annabeth?

Antes que eu pudesse responder, uma nuvem passou pelo sol. O cervo dourado tremeluziu e desapareceu, deixando a sra. O´Leary latindo para um monte de folhas. Preparei minha espada. Thalia armou seu arco. Instintivamente nos posicionamos de costas um para o outro. Um caminho de escuridão passou pela clareira e um garoto caiu dele, como se tivesse sido cuspido, pousando na grama aos nossos pés.

— Ai! — resmungou.

Ele bateu a poeira de sua jaqueta de aviador. Tinha mais ou menos doze anos, cabelos escuros, usava jeans, camiseta preta e um anel de caveira prateado na mão direita. Uma espada pendia ao seu lado.

— Nico — chamei.

Os olhos de Thalia se arregalaram.

— O irmão mais novo de Bianca.

Nico nos olhou de cara feia. Duvido que ele gostasse de ser anunciado como irmão mais novo de Bianca. Sua irmã, uma Caçadora de Ártemis, tinha morrido havia alguns anos, e esse ainda era um assunto delicado para ele.

— Por que vocês me trouxeram para cá? — reclamou — num minuto estou em um cemitério em Nova Orleans. No minuto seguinte... isso é Nova York? O que em nome de Hades eu estou fazendo em Nova York?

— Nós não o trouxemos para cá — jurei — Nós fomos... — um calafrio desceu pelas minhas costas. — Fomos trazidos juntos. Os três.

— Do que você está falando? — Nico quis saber.

— Os filhos dos Três Grandes — disse eu — Zeus, Poseidon e Hades.

Thalia respirou fundo.

— A profecia. Vocês não acham que Cronos...

Ela não concluiu o pensamento. Todos conhecíamos a grande profecia: uma guerra estava a caminho, entre os titãs e os deuses, e o primeiro filho de um dos três grandes a completar dezesseis anos tomaria uma decisão que salvaria ou destruiria o mundo. Isso se referia a um de nós. Ao longo dos últimos anos, o Senhor dos Titãs, Cronos, tentou manipular cada um de nós separadamente. Agora... será que ele estava tramando alguma coisa ao trazer os três juntos? O chão retumbou. Nico empunhou sua espada, uma lâmina negra de ferro estígio. A sra. O´Leary saltou para trás e latiu assustada. Percebi tarde demais que ela estava tentando me alertar. O chão se abriu sob Thalia, Nico e eu, e nós caímos na escuridão.

Eu esperava continuar caindo para sempre, ou talvez acabar achatado como uma panqueca de semideus quando atingíssemos o fundo. Mas o que vi a seguir foi Thalia, Nico e eu de pé num jardim, todos os três ainda gritando de terror, o que me fez sentir bastante idiota.

— O que... onde estamos? — Thalia perguntou.

O jardim era escuro. Fileiras de flores prateadas brilhavam fracamente, refletindo enormes pedras preciosas que delineavam o canteiro: diamantes, safiras e rubis do tamanho de bolas de futebol americano. Árvores arqueavam-se sobre nós, as copas cobertas de flores de laranjeira e frutas docemente perfumadas. O ar era frio e úmido, mas não como no inverno de Nova York. Parecia mais com uma caverna.

— Já estive aqui antes — eu disse.

Nico arrancou uma romã de uma árvore.

— O jardim da minha madrasta, Perséfone — ele fez uma cara azeda e largou a fruta — não comam nada.

Ele não precisava me avisar duas vezes. Uma só prova da comida do Mundo Inferior e nós nunca seriamos capazes de ir embora.

— Olhem para cima — Thalia alertou.

A princípio, pensei que a mulher fosse um fantasma. O vestido esvoaçava em torno dela como fumaça. Os longos cabelos escuros flutuavam e ondulavam como se não pesassem nada. O rosto era bonito, porem mortalmente pálido. Então, eu percebi que o vestido não era branco. Tinha todas as cores misturadas – flores vermelhas, azuis e amarelas brotavam do tecido – mas era estranhamente desbotado. Seus olhos eram do mesmo jeito, multicoloridos, mas esmaecidos, como se o Mundo Inferior houvesse sugado sua vontade de viver. Tive a impressão de que no mundo acima de nós ela seria bonita, ate brilhante.

— Sou Perséfone — disse ela. Sua voz fina e fraca. — Sejam bem-vindos, semideuses.

Nico esmagou a grama embaixo de sua bota.

— Bem-vindos? Depois da última vez, você tem coragem de me dar boas-vindas?

Eu me mexi, inquieto, porque alguém que falasse desse jeito com um deus pode ser transformado em tufos de poeira.

— Hum, Nico...

— Está tudo bem — disse Perséfone friamente — Tivemos uma pequena desavença familiar.

— Desavença familiar? — gritou Nico — Você me transformou em um dente-de-leão!

Perséfone ignorou o enteado.

— Como eu estava dizendo, semideuses, bem-vindos ao meu jardim.

Thalia baixou o arco.

— Você enviou o cervo dourado?

— E o cão infernal — admitiu a deusa — E a sombra que coletou Nico. Era necessário trazê-los juntos.

— Por quê? — perguntei.

Perséfone me observou e senti como se pequenas florzinhas crescessem em meu estômago.

— O Senhor Hades tem um problema — disse ela. — E se sabem o que é bom para vocês, irão ajudá-lo.

Sentamos em um terraço escuro com vista panorâmica para o jardim. As criadas de Perséfone trouxeram comida e bebida, que nenhum de nós tocou. Elas seriam bonitas não fosse o fato de estarem mortas. Estavam vestidas de amarelo e usavam coroas de margaridas e plantas venenosas na cabeça. Os olhos eram vazios e as vozes sombrias como o bater de assas de morcego. Perséfone sentou-se em um trono prateado e nos estudou.

— Se estivéssemos na primavera, poderia recebê-los apropriadamente no mundo lá em cima. Pena que no inverno isso seja o melhor que eu posso fazer.

Ela soou amarga. Depois de tantos milênios, acho que ainda se ressentia de viver com Hades metade do ano. Parecia sem cor e deslocada, como a fotografia de uma antiga primavera. Ela se virou em minha direção como se lesse meus pensamentos.

— Hades é meu marido e mestre, meu jovem. Eu faria qualquer coisa por ele. Mas neste caso preciso de ajuda de vocês, e rápido. Tem a ver com a espada do Senhor Hades.

Nico desdenhou.

— Meu pai não tem uma espada. Ele usa um exército e seu elmo das trevas.

— Ele não tinha uma espada — corrigiu Perséfone.

Thalia se levantou.

— Ele está forjando um novo símbolo de poder? Sem a permissão de Zeus?

A deusa da primavera apontou. Em cima da mesa, uma imagem tremulou e ganhou vida: ferreiros esqueletos trabalhavam sobre uma forja de chamas negras, usando machados decorados com caveiras de metal para moldar uma extensão de ferro em lâmina.

— A guerra contra o deus titã está muito próxima — disse Perséfone. — Meu senhor, Hades, tem de estar preparado.

— Mas Zeus e Poseidon nunca permitiram que Hades forjasse uma nova arma! — Thalia protestou — isso desequilibraria o acordo de divisão de poderes entre eles.

Perséfone balançou a cabeça.

— Você quer dizer que faria de Hades um igual? Acredite, filha de Zeus, o Senhor dos Mortos não tem planos contra seus irmãos. Ele sabia que nunca entenderiam, e foi por isso que forjou uma arma em segredo.

A imagem sobre a mesa tremeu. Um ferreiro zumbi ergueu a lâmina, ainda ardendo com o calor. Alguma coisa estranha estava presa na base – não era uma pedra preciosa. Parecia mais...

— Aquilo é uma chave? — perguntei.

Nico emitiu um som engasgado.

— As chaves de Hades?

— Espere — interrompeu Thalia — o que são as chaves de Hades?

Nico parecia mais pálido que sua madrasta.

— Hades tem um conjunto de chaves de ouro que podem trancar e destrancar a morte. Pelo menos... essa é a lenda.

— É verdade — afirmou Perséfone.

— Como se tranca ou destranca a morte? — perguntei.

— As chaves têm o poder de aprisionar uma alma no Mundo Inferior — Perséfone respondeu — ou libertá-la.

Nico engoliu em seco.

— Se uma daquelas chaves foi presa na espada...

— Aquele que a utilizar pode ressuscitar os mortos — Perséfone completou — ou, com um mero toque, pode ceifar a vida de qualquer coisa e mandar a alma para o Mundo Inferior.

Estávamos todos em silêncio. A água borbulhava em uma fonte tranquila. Criadas flutuavam à nossa volta, oferecendo bandejas de frutas e doces que nos manteriam no Mundo Inferior para sempre.

— Ótima espada — disse eu, afinal.

— Seria impossível deter Hades — concordou Thalia.

— Estão vendo — começou Perséfone — porque vocês devem ajudar a recuperá-la.

Eu a encarei.

— Você disse recuperá-la?

Os olhos de Perséfone eram bonitos e mortalmente sérios, como botões venenosos.

— A lâmina foi roubada quando estava quase pronta. Não sei como, mas suspeito de um semideus, algum servo de Cronos. Se a lâmina cair nas mãos do Senhor dos Titãs...

Thalia ficou de pé.

— Vocês permitiram que a lâmina fosse roubada! Que coisa idiota, não? Provavelmente Cronos está com ela agora!

Então as flechas de Thalia se transformaram em rosas de talos longos. O arco se fundiu em uma vinha de madressilvas pontuadas de flores brancas e douradas.

— Cuidado, caçadora! — Perséfone alertou — Seu pai pode ser Zeus e você pode ser a tenente de Ártemis, mas ninguém se dirige a mim com desrespeito em meu próprio palácio.

Thalia trincou os dentes.

— Devolva... meu... arco.

Perséfone acenou. O arco e as flechas voltaram ao normal.

— Agora, sente-se e ouça. A espada não pode ter deixado o Mundo inferior ainda. O Senhor Hades usou as chaves restantes para fechar o reino. Nada entra ou sai até que ele encontre a espada, e ele está usando todo o seu poder para localizar o ladrão.

Thalia sentou-se relutante.

— Então, para que você precisa de nós?

— A procura da lâmina não pode ser do conhecimento de todos — respondeu Perséfone — Nós trancamos o reino, mas não anunciamos o porquê. E os servos de Hades não podem ser usados na busca. Eles não podem saber que a lâmina existe até que seja terminada. Certamente não podem saber que está desaparecida.

— Se acharem que Hades está com problemas, eles podem desertar — supôs Nico — E podem se unir aos titãs.

Perséfone não respondeu, mas se uma deusa parecer nervosa, ela pareceu.

— O ladrão tem de ser um semideus. Nenhum imortal pode roubar a arma de outro imortal diretamente. Mesmo Cronos tem de respeitar a Antiga Lei. Ele tem um herói aqui em algum lugar. E para pegar um semideus... devemos usar três.

— Por que nós? — quis saber.

— Vocês são os filhos dos três grandes — começou a deusa — Quem poderia resistir aos seus poderes combinados? Além disso, quando vocês recuperarem a espada de Hades, enviarão uma mensagem ao Olimpo. Zeus e Poseidon não protestaram contra a nova arma de Hades se ela lhe for entregue por seus próprios filhos. Mostrará que vocês confiam em Hades.

— Mas eu não confio nele — retrucou Thalia.

— Nem eu — completei. — Por que deveríamos fazer alguma coisa por Hades, principalmente dar a ele uma superarma? Certo, Nico?

Nico olhava fixamente para a mesa. Seus dedos batiam levemente na sua lâmina negra de ferro estígio.

— Certo Nico? — incentivei.

Levou um segundo até que ele se concentrasse em mim.

— Eu tenho que fazer isso, Percy. Ele é meu pai.

— Ah, de jeito nenhum — protestou Thalia — você não pode acreditar que isso seja uma boa ideia!

— Você prefere que a espada vá para as mãos de Cronos?

Esse era um bom argumento.

— O tempo está passando — disse Perséfone — O ladrão deve ter cúmplices no Mundo Inferior, e estará procurando por uma saída.

Franzi o cenho.

— Pensei que você tinha dito que o reino estava trancado.

— Nenhuma prisão é hermeticamente fechada, nem mesmo o Mundo Inferior. As almas estão sempre encontrando saídas, com mais rapidez do que Hades pode bloqueá-las. Vocês precisam recuperar a espada antes que ele deixe nosso reino, ou tudo estará perdido.

— Mesmo que quiséssemos fazer isso — começou Thalia — como encontraríamos esse ladrão?

Uma planta em um vaso apareceu na mesa: era um craveiro amarelo, doente com algumas folhas verdes. O cravo inclinava-se para o lado, como se tentasse encontrar o sol.

— Isto vai guiá-los — informou a deusa.

— Um craveiro mágico? — perguntei.

— A flor que sempre aponta para o ladrão. À medida que sua presa se aproximar da fuga, as pétalas caíram.

Foi só falar e uma pétala amarela ficou cinza e caiu flutuando para a sujeira.

— Se todas as pétalas caírem, a flor morre — explicou Perséfone — Isso significará que o ladrão alcançou uma saída e que vocês falharam.

Olhei para Thalia. Ela não pareceu muito entusiasmada com toda aquela coisa de persiga-um-ladrão-com-uma-flor. Depois olhei para Nico. Infelizmente, reconheci a expressão em seu rosto. Eu sabia o que era querer deixar um pai orgulhoso, mesmo que seu pai fosse difícil de amar. Neste caso, muito difícil de amar. Nico ia executar a missão, com ou sem a gente. E eu não podia deixá-lo sozinho.

— Uma condição — disse eu a Perséfone — Hades terá que jurar pelo Rio Estige que nunca usará essa espada contra os deuses.

A deusa de ombros.

— Não sou o Senhor Hades, mas tenho certeza de que ele faria isso... como pagamento pela sua ajuda.

Outra pétala caiu do craveiro. Eu me virei para Thalia.

— Eu seguro a flor enquanto você acaba com o ladrão.

Ela suspirou.

— Tudo bem. Vamos pegar esse idiota.


***


O Mundo Inferior não tinha entrado no clima natalino. À medida que descíamos pela estrada do palácio ate os Campos de Asfódelos, o lugar ficava muito mais parecido com aquele da minha visita anterior: realmente depressivo. Grama amarelada e choupos negros poucos desenvolvidos ondulavam a perder de vista. Sombras vagavam sem rumo pelas colinas, saindo do nada e indo para o nada, conversando entre si e tentando lembrar quem foram em vida. Bem acima de nós, o teto da caverna cintilava ameaçadoramente.

Eu carregava o craveiro, o que me fez sentir bem estúpido. Nico nos guiava, já que sua lâmina podia abrir caminho através de qualquer grupo de mortos-vivos. Thalia basicamente resmungava que ela deveria ter sido mais esperta em vez de sair em uma missão com dois garotos.

— Perséfone não pareceu meio tensa? — perguntei.

Nico atravessou um bando de fantasmas, afastando-os com a lâmina de ferro estígio.

— Ela sempre age assim quando estou por perto. Ela me odeia.

— Então porque ela o incluiu na missão?

— Provavelmente foi ideia do meu pai.

Pareceu que ele queria que aquilo fosse verdade, mas eu não tinha tanta certeza. Era estranho para mim o fato de que não fora o próprio Hades quem nos designara a missão. Se essa espada era tão importante para ele, porque deixou que Perséfone explicasse as coisas? Geralmente, Hades gostava de ameaçar semideuses pessoalmente.

Nico seguiu em frente. Não importava quão cheios os campos estivessem – e se você já viu a Times Square na noite de Ano-Novo, sabe do que eu estou falando – os espíritos abriam caminho diante dele.

— Ele sabe lidar com multidões de zumbis — admitiu Thalia — Acho que vou levá-lo comigo da próxima vez que eu for ao shopping.

Ela segurou firme seu arco, como se estivesse com medo que ele se transformasse em um ramo de madressilvas de novo. Thalia não parecia mais velha que no ano anterior, e de repente me ocorreu que ela nunca envelheceria, agora que era uma caçadora. E isso queria dizer que eu era mais velho que ela. Esquisito.

— Então? — comecei — como a imortalidade está tratando você?

Ela revirou os olhos.

— Não é imortalidade total Percy. Você sabe disso. Nós ainda podemos morrer em combate. É que... nós nunca envelhecemos ou ficamos doentes, então vivemos para sempre, contanto que nenhum monstro nos faça em pedaços.

— Isso é sempre um perigo.

— Sempre.

Ela olhava em volta, percebi que observava atentamente os rostos dos mortos.

— Se você está procurando Bianca — falei rápido para que Nico não me ouvisse — ela deve estar nos Campos Elíseos. Ela teve uma morte de herói.

— Eu sei — respondeu ela, rispidamente. Então se recompôs — Não é isso, Percy. Eu estava... esqueça.

Fui tomado por um calafrio. Lembrei que a mãe de Thalia morrera numa batida de carro alguns anos atrás. Elas nunca haviam sido próximas, mas Thalia não teve a chance de se despedir. A sombra de sua mãe poderia estar vagando por ali... Era natural que Thalia parecesse exaltada.

— Desculpe — disse eu — Não me toquei.

Nossos olhos se encontraram e eu senti que ela compreendeu. Sua expressão suavizou.

— Tudo bem. Vamos acabar logo com isso.

Outra pétala caiu do cravo enquanto caminhávamos. Não fiquei feliz quando a flor nos indicou a direção dos Campos da Punição. Eu tinha esperanças de que pudéssemos ser conduzidos para os Campos Elíseos para estar com pessoas bonitas e festejar, mas não. A flor parecia gostar da parte mais difícil e cruel do Mundo Inferior.

Pulamos um córrego de lava e seguimos caminho por entre horríveis cenas de tortura. Não vou descrevê-las porque você perderia completamente o apetite, mas eu gostaria de estar com algodão nos ouvidos. O craveiro se inclinou para uma colina a nossa esquerda.

— Lá em cima — disse eu.

Thalia e Nico pararam. Eles estavam cobertos de fuligem por caminhar pelos Campos da Punição. Acho que eu não estava muito melhor. Um som alto e opressor vinha do outro lado da colina, como se alguém puxasse uma máquina de lavar. Então, a colina foi sacudida por um BOM! BOM! BOM! e um homem xingou.

Thalia olhou para Nico.

— Esse não é quem eu estou pensando que é, é?

— Acho que sim — respondeu Nico — o maior especialista em enganar a morte.

Antes que eu pudesse perguntar o que Nico queria dizer, ele nos levou até o topo da colina. O cara do outro lado não era bonito, e não estava feliz. Parecia um daqueles bonecos de troll com a pele laranja, barrigão, braços e pernas mirrados e com um tipo de tanga-fralda envolta na cintura. Seus cabelos de rato estavam eriçados para o alto como uma tocha. Ele pulava de um lado para o outro xingando e chutando uma pedra duas vezes maior que ele.

— Não vou! — berrava — não, não, não!

Então, ele lançou uma sequência de pragas em vários idiomas diferentes. Se eu tivesse um daqueles potes que você coloca uma moeda para cada palavrão, teria feito uns quinhentos dólares. Ele começou a se afastar da pedra, mas, depois de dez passos, deu uma guinada, como se uma força invisível o puxasse. Cambaleou de volta e começou a bater com a cabeça na pedra.

— Tudo bem! — gritou — tudo bem, maldito seja!

Ele coçou a cabeça e resmungou mais alguns palavrões.

— Mas essa é a última vez. Você está me ouvindo?

Nico olhou para nós.

— Vamos. Enquanto ele não tenta de novo.

Nós descemos a colina.

— Sísifo — chamou Nico.

O cara de troll levantou os olhos, surpreso. Depois arrastou-se para trás da pedra.

— Ah, não! Vocês não vão me fazer de idiota com esses disfarces. Eu sei que vocês são Fúrias!

— Não somos Fúrias — retruquei — só queremos conversar.

— Vão embora — gritou ele — flores não melhoram a situação. É muito tarde para se desculpar!

— Veja — começou Thalia — nós queremos apenas...

— Lá, lá, lá! — berrou ele — Não estou escutando!

Brincamos de pega-pega com ele em torno da pedra até que finalmente Thalia, a mais rápida, agarrou o velho pelos cabelos.

— Parem — choramingou ele — Eu tenho pedras para empurrar. Pedras para empurrar!

— Eu empurro sua pedra! — ofereceu Thalia — Apenas cale-se e fale com meus amigos.

Sísifo parou de resistir.

— Você vai... vai empurrar minha pedra?

— É melhor que ficar olhando para você — Thalia me olhou — Seja rápido com isso.

Então ela conduziu Sísifo até nós. Ela apoiou os ombros contra a pedra e começou a empurrá-la bem devagar para cima.

Sísifo fez cara feia para mim, desconfiado. Ele beliscou meu nariz.

— Ei! — disse eu.

— Então você realmente não é uma Fúria — concluiu maravilhado — Para que a flor?

— Procuramos uma pessoa — respondi — A planta está nos ajudando a encontrá-la.

— Perséfone — ele cuspiu na poeira — Esse é um dos seus artifícios de busca, não é? — Ele se inclinou para frente e senti um bafo desagradável de velho-que-está-rolando-uma-pedra-por-uma-eternidade. — Eu a fiz de boba uma vez, sabe. Eu fiz todos eles de bobos.

Olhei para Nico.

— Tradução?

— Sísifo enganou a morte. — explicou Nico. — Primeiro ele acorrentou Tânatos, o ceifador de almas, para que ninguém pudesse morrer. Então, quando Tânatos se libertou e estava prestes a matá-lo, Sísifo disse a esposa que fizesse um funeral com os rituais errados, para que ele nunca descansasse em paz. Nosso Sissi... Posso chamá-lo de Sissi?

— Não!

— Sissi enganou Perséfone, induzindo-a a deixá-lo voltar para o mundo a fim de perseguir a esposa. E ele não retornou para cá.

O velho gargalhou.

— Continuei vivo outros trinta anos antes que eles finalmente viessem atrás de mim!

Thalia estava na metade do caminho agora. Ela cerrava os dentes, empurrando a pedra com as costas. Sua expressão dizia: Apressem-se!

— Então essa foi a sua punição — eu disse a Sísifo. — Rolar uma pedra até o alto da colina para sempre. Valeu à pena?

— Um retrocesso temporário! — gritou ele — Eu vou sair daqui em breve. E, quando eu sair, todos lamentarão!

— Como você vai sair do Mundo Inferior? — perguntou Nico — Está trancado, você sabe disso?

Sísifo forçou um sorriso fraco.

— Isso foi o que o outro me perguntou.

Meu estômago revirou.

— Alguém mais pediu a sua opinião?

— Um jovem irritado — Sísifo lembrou — Não muito educado. Colocou uma espada na minha garganta. Não se ofereceu para rolar a minha pedra nem nada.

— O que você disse a ele? — quis saber Nico — Quem ele era?

Sísifo massageou os ombros. Ele olhou de relance para Thalia, que estava quase no topo da colina. O rosto dela estava vermelho e encharcado de suor.

— Ah... é difícil dizer — Sisifo respondeu — Nunca o vi antes. Ele carregava um pacote longo todo embrulhado em tecido preto. Esquis, talvez? Uma pá? Quem sabe se vocês esperarem aqui eu possa ir procurá-lo...

— O que você disse a ele? — perguntei.

— Não lembro.

Nico desembainhou sua espada. O ferro estígio era tão frio que produziu vapor no ar quente e seco dos Campos da Punição.

— Faça um esforço.

O velho estremeceu.

— Mas que tipo de pessoa carrega uma espada como essa?

— Um filho de Hades — disse Nico. — Agora me responda!

Sísifo ficou pálido.

— Eu disse a ele que falasse com Melinoe! Ela sempre tem uma saída!

Nico baixou sua espada. Acho que o nome Melinoe o incomodou.

— Você está maluco? — devolveu ele — Isso é suicídio!

O velho deu de ombros.

— Já enganei a morte antes. Posso fazer isso de novo.

— Como era esse semideus?

— Hum... ele tinha um nariz — disse Sisifo — Uma boca. E um olho e...

— Um olho? — interrompi — ele usava tapa-olho?

— Ah... talvez — respondeu ele — tinha cabelos na cabeça. E... — ele arfou por cima do meu ombro — lá está ele!

Nós caímos nessa. Assim que nos viramos, Sísifo escapou colina abaixo.

— Estou livre! Estou livre! Estou... ARGH! A três metros da colina, sua corrente invisível estendeu-se ao máximo e ele caiu de costas. Eu e Nico agarramos seus braços e o rebocamos de volta.

— Malditos sejam! — ele soltou xingamentos em grego antigo, latim, inglês, francês e muitas outras línguas que eu não reconheci. — Nunca vou ajudá-los! Vão para o Hades!

— Já estamos nele — resmungou Nico.

— Chegando — Thalia berrou.

Levantei os olhos e devo ter falado palavrões. A pedra descia a encosta, bem na nossa direção. Nico pulou para o lado. Eu pulei para outro. Sísifo gritou NÃÃÃÃÃO! Enquanto a coisa fazia o caminho até ele. De alguma forma, tomou coragem e parou a pedra antes que ela passasse por cima dele. Acho que ele tinha bastante prática.

— Pegue-a de novo — bradou ele — Por favor. Não posso aguentar mais.

— De novo não — ofegou Thalia — Agora é com você.

Ele nos tratou com uma linguagem bem pior. Estava claro que não ia nos ajudar mais, então o deixamos com sua punição.

— A caverna de Melinoe é por aqui — disse Nico.

— Se esse tal ladrão realmente tem um olho só... — ponderei — pode ser Ethan Nakamura, filho de Nêmesis. Foi ele quem libertou Cronos.

— Eu lembro — disse Nico, sombrio — mas se vamos lidar com Melinoe, temos grandes problemas. Vamos.

Enquanto nos afastávamos, Sísifo gritava.

— Tudo bem, mas essa é a ultima vez. Estão me ouvindo? A última vez!

Thalia tremeu.

— Você está bem? — perguntei a ela.

— Acho que... — hesitou ela — Percy, o assustador é que quando eu cheguei ao topo, achei que tinha acabado. Pensei “Isso não é tão difícil. Posso fazer a pedra ficar”. E quando ela rolou de volta, eu quase me entusiasmei a tentar de novo. Achei que pudesse conseguir numa segunda vez.

Ela olhou para trás melancolicamente.

— Vamos — disse eu — quanto mais cedo sairmos daqui, melhor.


***


Caminhamos pelo que pareceu uma eternidade. Mais três pétalas do cravo murcharam, o que significava que metade dele estava oficialmente morta. A flor nos conduziu para uma extensão de colinas cinza e irregulares, semelhantes a dentes. Então caminhamos naquela direção, por uma planície de rochas vulcânicas.

— Belo dia para ficar a toa — resmungou Thalia. — Provavelmente, as Caçadoras estão se banqueteando em alguma clareira numa floresta exatamente neste instante.

Imaginei o que minha família estaria fazendo. Minha mãe e meu padrasto, Paul, ficariam preocupados quando eu não chegasse da escola, mas não era a primeira vez que isso acontecia. Eles concluiriam rapidamente que eu estaria em alguma missão. Minha mãe andaria de um lado para o outro na sala, pensando se eu conseguiria voltar para abrir os meus presentes.

— Então, quem é essa Melinoe? — perguntei, tentando desviar meu pensamento de casa.

— Longa história — respondeu Nico — Longa e muito assustadora história.

Eu quase perguntei o que ele queria dizer quando Thalia se agachou.

— Armas!

Desembainhei Contracorrente. Tenho certeza de que eu parecia aterrorizante com um vaso de cravo na outra mão, então o coloquei no chão. Nico desembainhou a espada. Ficamos de costas um para o outro. Thalia preparou uma flecha.

— O que foi? — sussurrei.

Ela parecia estar ouvindo algo. Então seus olhos se arregalaram. Um círculo de uma dúzia de daímones materializou-se em torno de nós. Tinham o corpo parte mulher, parte morcego. Suas caras eram achatadas e raivosas, possuíam caninos e olhos salientes. Pelo cinza desbotado e uma armadura fragmentada cobriam seus corpos. Tinham braços encolhidos com garras em vez de mãos, asas de couro cresciam das costas e as pernas eram curtas, grossas e arqueadas. Elas seriam engraçadas, não fosse o brilho assassino dos olhos.

— Queres — afirmou Nico.

— O quê? — perguntei.

— Espíritos do campo de batalha. Elas se alimentam da morte violenta.

— Ah, maravilha — disse Thalia.

— Afastem-se! — ordenou Nico as daímones — O filho de Hades está mandando.

As Queres sibilaram. As bocas espumavam. Elas olharam para as nossas armas, apreensivas, mas senti que não ficaram muito impressionadas com a ordem de Nico.

— Em breve Hades será derrotado — uma delas rangeu os dentes — Nosso novo mestre nos dará um reino livre!

Nico piscou.

— Novo mestre?

A daímon líder deu o bote. Nico estava tão surpreso que ela poderia tê-lo feito em pedaços, mas Thalia atirou uma flecha à queima roupa na cara feia de morcego da criatura, e ela se desintegrou. O restante delas avançou. Thalia deixou o arco de lado e desembainhou as facas. Eu me esquivei enquanto a espada de Nico zuniu por cima da minha cabeça, cortando uma das criaturas pela metade. Eu cortava e golpeava e três ou quatro delas explodiram à minha volta, mas outras continuavam a aparecer.

— Iápeto vai amaldiçoá-los! — uma gritou.

— Quem? — perguntei, mas então eu a atravessei com a minha espada.

Anote aí: se você acabar com um monstro ele não poderá responder as suas perguntas. Nico também desenhava arcos com a sua espada, golpeando as Queres. A lâmina absorvia a essência delas, como um aspirador a vácuo, e quanto mais ele as destruía, mais frio ficava o ar ao redor. Thalia golpeou as costas de uma daímon, atravessando-a com uma de suas facas e com a outra espetou um segundo monstro sem ao menos virar-se para trás.

— Morra sofrendo, mortal!

Antes que eu pudesse levantar minha espada para me defender, as garras de uma daímon rasparam meu ombro. Se eu estivesse usando uma armadura, tudo bem, mas ainda estava com o meu uniforme da escola. As garras da coisa abriram um corte na minha camisa e rasgaram minha pele. Todo o meu lado esquerdo pareceu explodir de dor. Nico chutou o monstro para longe e o apunhalou. Tudo o que pude fazer foi cair e me encolher, tentando resistir a terrível queimação. O som da batalha se extinguiu. Thalia e Nico correram para o meu lado.

— Aguente firme Percy — Thalia pediu. — Você vai ficar bem.

Mas a falha em sua voz me dizia que o ferimento era grave. Nico o tocou e eu berrei de dor.

— Néctar — disse ele. — Estou colocando néctar sobre a ferida.

Nico tirou a rolha do frasco com a bebida dos deuses e pingou um pouco no meu ombro. Isso era perigoso, pois apenas um gole do liquido é quase tudo o que um semideus pode suportar. Mas, imediatamente, a dor aliviou. Juntos, Thalia e Nico fizeram um curativo na ferida, e eu desmaiei somente algumas vezes. Eu não podia saber quanto tempo se passara, mas a última coisa que eu me lembro é de estar apoiado com as costas em uma rocha. Meu ombro estava enfaixado. Thalia me alimentava com pequeninos pedaços de ambrosia sabor chocolate.

— As Queres? — murmurei.

— Foram embora, por enquanto — respondeu ela. — Por um instante, você me deixou preocupada, Percy, mas acho que vai resistir.

Nico se agachou perto de nós. Ele segurava o craveiro. A flor só tinha mais cinco pétalas.

— As Queres vão voltar — alertou. Ele olhava para o meu ombro com preocupação — Esse ferimento... as Queres são espíritos da doença e da peste, assim como as da violência. Nós podemos retardar a infecção, mas em algum momento você precisará de sérios cuidados. Quer dizer, do poder divino. Ou então...

Ele não completou o pensamento.

— Eu vou ficar bem.

Tentei me sentar e imediatamente me senti enjoado.

— Devagar — disse Thalia — você precisa descansar para poder se mexer depois.

— Não há tempo — olhei para o craveiro — Uma das daímones mencionou Iápeto. É isso mesmo ou minha memória está falhando? Ele é um titã?

Thalia assentiu desconfortável.

— O irmão de Cronos, pai de Atlas. Ele era conhecido como o titã do oeste. Seu nome significa “o Perfurador”, porque é isso que ele gosta de fazer com seus inimigos. Foi lançado ao Tártaro com seus irmãos. Ainda deveria estar lá.

— Mas se eles usarem a espada de Hades para destrancar a morte? — perguntei.

— Ainda não sabemos quem eles são — lembrou Thalia.

— O meio-sangue que trabalha para Cronos — disse eu.

— Possivelmente, Ethan Nakamura. E ele está começando a recrutar alguns aliados de Hades para o seu lado, como as Queres. As daímones acham que, se Cronos vencer a guerra, eles terão caos e maldade além do combinado.

— E provavelmente estão certos — disse Nico — meu pai tenta manter o equilíbrio. Ele reina sobre os espíritos mais violentos. Se Cronos escalar um de seus irmãos para ser o senhor do Mundo Inferior...

— Como esse Iápeto — completei.

— ...então o Mundo Inferior vai ficar bem pior — continuou Nico — as Queres gostariam disso. E Melinoe também.

— Você ainda não nos disse quem é Melinoe.

Nico mordeu o lábio.

— É a deusa dos fantasmas... uma das servas do meu pai. Ela controla os mortos que vagam sem descanso pela Terra. Todas as noites ela ascende do Mundo Inferior para aterrorizar os mortais.

— Ela tem seu próprio caminho para o mundo, lá em cima?

Nico assentiu.

— Duvido que possa ter sido bloqueado. Normalmente, ninguém nunca pensaria em atravessar sua caverna. Mas se esse semideus for corajoso o suficiente para fazer um acordo com ela...

— Ele poderá voltar ao mundo — emendou Thalia — e levar a espada a Cronos.

— Que a usaria para tirar seus irmãos do Tártaro. E nós teríamos um grande problema — concluí.

Tentei ficar em pé. Uma onda de enjoo quase me fez desmaiar, mas Thalia me amparou.

— Percy — começou ela — você não esta em condições...

— Tenho de estar.

Observei enquanto mais pétalas murchavam e caíam do cravo. Faltavam quatro para o fim dos dias.

— Me dê a planta. Temos de encontrar a caverna de Melinoe.

Enquanto caminhávamos tentei pensar em coisas positivas: meus jogadores de basquete favoritos, minha última conversa com Annabeth, o que minha mãe faria para o jantar de Natal... qualquer coisa menos a dor. Mesmo assim, eu sentia como se um tigre-dentes-de-sabre estivesse mastigando o meu ombro. Eu não ia ser muito útil numa luta, e me amaldiçoava por ter baixado a guarda. Nunca deveria ter sido ferido. Agora Thalia e Nico teriam que rebocar meu traseiro inútil pelo restante da missão. Eu estava me lamentando que não notei o som de água em movimento até Nico dizer “Oh-oh”.

Cerca de quinze metros a nossa frente, um rio escuro corria com violência por uma garganta de rocha vulcânica. Eu já tinha visto o Rio Estige, e este não parecia o mesmo rio. Era estreito, a correnteza, veloz. A água era negra como nanquim. Até a fumaça produzida era negra. A margem oposta mais distante estava apenas a nove metros, muito longe para saltarmos, e não havia ponte.

— O Rio Lete — Nico amaldiçoou em grego antigo. — Nunca vamos atravessá-lo.

A flor apontava para o outro lado: na direção de uma montanha obscura e de um caminho para a caverna. Além da montanha, os muros do Mundo Inferior assomavam como um céu de granito negro. Eu não imaginara que o Mundo Inferior pudesse ter uma fronteira, mas era o que aqueles muros pareciam ser.

— Tem de haver um meio de atravessá-lo — falei.

Thalia se ajoelhou próximo a margem.

— Cuidado! — alertou Nico — Esse é o rio do esquecimento. Se uma gota da água respingar, você começará a se esquecer de quem é.

Thalia recuou.

— Conheço esse lugar. Luke me falou dele uma vez. As almas vem aqui quando escolhem renascer, para esquecer totalmente suas vidas anteriores.

Nico assentiu.

— Nade nessa água e sua mente será apagada. Você será um bebê recém-nascido.

Thalia estudou a margem oposta.

— Eu poderia atirar uma flecha para o outro lado, talvez, ancorar uma corda em uma daquelas pedra.

— Você quer confiar seu peso a uma corda que não está amarrada? — perguntou Nico.

Thalia levantou as sobrancelhas.

— Tem razão. Funciona nos filmes, mas... não. Você pode evocar alguns mortos para nos ajudarem?

— Eu poderia, mas eles só apareceriam no meu lado do rio. Água correte age como uma barreira para os mortos. Eles não podem atravessá-la.

Eu me encolhi.

— Que tipo de regra idiota é essa?

— Ei, eu não inventei isso. — Ele estudou meu rosto. — Você está horrível Percy. Deveria se sentar.

— Não posso. Vocês precisam de mim para isso.

— Para quê? — Perguntou Thalia — você mal consegue ficar em pé.

— É água, não é? Vou ter de controlá-la. Talvez eu possa mudar o seu curso tempo suficiente para que a gente consiga atravessar.

— Nas suas condições? — disse Nico — De jeito nenhum. Eu me sentiria mais seguro com a ideia da flecha.

Cambaleei até a beira do rio. Eu não sabia se conseguiria fazer aquilo. Eu era filho de Poseidon, então controlar água salgada não era problema. Rios comuns... talvez, se os espíritos do rio quisessem cooperar. Mas rios mágicos do Mundo Inferior? Eu não tinha ideia.

— Afastem-se — pedi.

Eu me concentrei na correnteza: a barulhenta água negra que passava com velocidade. Eu a imaginei como parte do meu corpo. Poderia controlar o fluxo, fazê-lo atender a minha vontade. Não tinha certeza, mas achei que a água batia e borbulhava com mais violência, como se pudesse sentir minha presença. Eu sabia que não conseguiria parar todo o rio de uma só vez. A água represada inundaria o vale todo, explodindo em nossa direção assim que eu a libertasse. Mas havia outra solução.

— Isso não vai ser fácil — murmurei.

Ergui meus braços como se levantasse alguma coisa acima de minha cabeça. Meu ombro ferido queimou como lava, mas tentei ignorá-lo. O rio se ergueu. A correnteza elevando-se das margens formava um grande arco. Era um barulhento arco de água negra de seis metros de altura. O leito do rio a nossa frente se tornou lodo seco, um túnel no meio da água apenas largo o suficiente para duas pessoas caminharem lado a lado. Thalia e Nico me encararam maravilhados.

— Vão. Não vou conseguir sustentar isso por muito tempo.

Pontos amarelos dançavam em frente aos meus olhos. Meu ombro ferido quase gritava de dor. Thalia e Nico caminharam com dificuldade para o leito do rio e seguiram em frente pelo lodo pegajoso.

Nem uma única gota. Não posso deixar que nem uma única gota d’água respingue neles.

O Rio Lete lutou comigo. Ele não queria ser arrancado de suas margens. Queria despencar sobre meus amigos, apagar suas mentes e afogá-los. Mas sustentei o arco. Thalia, do outro lado, subiu para a margem e se voltou para ajudar Nico.

— Venha Percy — chamou ela — Ande!

Meus joelhos vibravam. Meus braços tremiam. Dei um passo a frente e quase cai. O arco de água estremeceu.

— Não posso! — gritei de volta.

— Sim, você pode — retrucou ela — nós precisamos de você!

De alguma forma, consegui descer para o leito do rio. Um passo depois outro. Acima, a água. Minhas botas chapinhavam no lodo. Na metade do caminho, eu tropecei. Ouvi Thalia gritar “Não!”. E perdi minha concentração.

Enquanto o Rio Lete desabava sobre mim, tive tempo para um último e desesperado pensamento. Seco. Ouvi o bramido e senti o impacto de toneladas de água a medida que o rio retomava o seu curso natural. Mas... Abri os olhos. Eu estava envolto em escuridão, mas continuava completamente seco. Uma camada de ar me cobria como uma segunda pele, protegendo-me da água. Eu me esforcei para ficar de pé. Mesmo esse pequeno esforço para ficar seco – algo que já fiz muitas vezes em águas normais – foi quase mais do que eu podia aguentar.

Avancei com dificuldade pela correnteza negra, cego e duas vezes mais dolorido. Subi na margem do Lete, surpreendendo Thalia e Nico, que pularam um bom metro para trás. Cambaleei para frente, cai diante de meus amigos e desmaiei gelado. O gosto de néctar me fez despertar. Meu ombro parecia melhor, mas havia um zumbido desconfortável em meus ouvidos. Meus olhos ardiam como se estivesse com febre.

— Não podemos arriscar com mais néctar — Thalia dizia — ele vai explodir em chamas.

— Percy — chamou Nico — você pode me ouvir?

— Chamas — murmurei — Entendi.

Eu me sentei devagar. Meu ombro tinha novas bandagens. Ainda doía, mas eu podia ficar de pé.

— Estamos perto — disse Nico — você consegue andar?

A montanha assomava acima de nós. Uma trilha de poeira se insinuava por uns trinta metros ate a entrada da caverna. O caminho era pavimentado com ossos humanos, para dar um clima aconchegante.

— Estou pronto — disse eu.

— Não gosto disso — resmungou Thalia.

Ela segurava com cuidado o craveiro, que apontava na direção da caverna. A flor tinha agora duas pétalas, como se fosse duas tristes orelhas de coelho.

— Uma caverna assustadora — comentei — a deusa dos fantasmas. Dá para piorar?

Em uma espécie de resposta, o som de um assobio ecoou da montanha. Uma névoa branca veio da caverna, como se alguém tivesse ligado uma máquina de gelo seco. Na neblina, uma imagem apareceu: uma mulher alta com cabelos louros e desgrenhados. Ela vestia um roupão de banho e tinha uma taça de vinho na mão. Seu rosto era severo e desaprovador. Eu podia enxergar através dela, então sabia que era algum tipo de espírito, mas sua voz soava bastante real.

— Agora você volta — rosnou ela — bom, é tarde demais!

Olhei para Nico.

— Melinoe? — sussurrei.

Ele não respondeu. Estava estático, encarando o espírito. Thalia abaixou o arco.

— Mãe? — Seus olhos se encheram de água. De repente, ela parecia ter uns sete anos. O espírito jogou no chão a taça de vinho, que se estilhaçou e desapareceu na neblina. — Isso mesmo, menina. Condenada a vagar pela Terra, e isso é culpa sua! Onde você estava quando eu morri? Por que fugiu quando precisei de você? — Eu... eu...

— Thalia — chamei — ela é apenas um fantasma. Não pode machucar você.

— Sou mais que isso — rosnou o espírito — Thalia sabe.

— Mas... você me abandonou — Thalia argumentou.

— Menina desprezível! Fugitiva ingrata!

— Pare!

Nico deu um passo a frente com a espada desembainhada, mas o espírito mudou de forma e o encarou. Este fantasma era mais difícil de enxergar. Era uma mulher em um vestido de veludo negro fora de moda, com um chapéu combinando. Usava um colar de perolas e luvas brancas, e seus cabelos escuros estavam presos para trás. Nico parou onde estava.

— Não...

— Meu filho — disse o fantasma — Morri quando você era tão pequeno. Eu assombro o mundo com pesar, pensando em você e em sua irmã.

— Mamãe?

— Não, é minha mãe — murmurou Thalia, como se ela ainda visse a primeira imagem.

Meus amigos estavam indefesos. A neblina começou a ficar espessa em volta de seus pés, enrolando-se em suas pernas como se fosse uma videira. As cores pareciam sumir de suas roupas e do rosto, como se eles também virassem sombras.

— Chega — disse eu, mas minha voz mal saiu. Apesar da dor, levantei minha espada e andei em direção ao fantasma. — Você não é a mãe de ninguém!

O fantasma se virou para mim. A imagem tremeluziu e eu vi a deusa em sua verdadeira forma. Você poderia pensar que depois de algum tempo eu não fosse mais me apavorar com a aparência dos monstros gregos, mas Melinoe me pegou de surpresa. Sua metade direita era pálida, da cor de giz branco, como se tivessem drenando todo o seu sangue. A metade esquerda era negra como piche e se vida, parecia uma pele de múmia. Ela usava um vestido e véu dourados. Seus olhos eram órbitas negras, vazias, e quando eu olhei lá dentro tive a sensação de ver minha própria morte.

— Onde estão os seus fantasmas? — quis saber ela, irritada.

— Meus... eu não sei. Não tenho nenhum.

Ela reclamou.

— Todo mundo tem fantasmas... Mortes que você lamente. Culpa. Medo. Por que não consigo ver os seus?

Thalia e Nico ainda estavam hipnotizados, encarando a deusa como se ela fosse a mãe que há muito eles perderam. Pensei em outros amigos que eu tinha visto morrer: Bianca di Angelo, Zoe Doce-Amarga, Lee Fletcher, para citar alguns.

— Estou em paz com eles — respondi — fizeram a passagem. Não são fantasmas. Agora, liberte meus amigos!

Ataquei Melinoe com minha espada. Ela se afastou rápido, rosnando de frustração. A neblina ao redor de Thalia e Nico se dissipou. Eles olhavam para a deusa como se só agora vissem quanto ela era medonha.

— O que é isto? — Thalia quis saber — Onde...

— Era um truque — Nico respondeu. — Ela nos enganou.

— Vocês estão muito atrasados, semideuses — informou Melinoe. Outra pétala caiu do craveiro, restando apenas uma. — O acordo foi feito.

— Que acordo? — perguntei, e Melinoe sibilou e eu percebi que essa era a sua maneira de rir.

— São tantos fantasmas, meu jovem semideus. Eles desejam ser livres. Quando Cronos comandar o mundo estarei livre para andar entre os mortais durante o dia e a noite, semeando o terror como eles merecem.

— Onde está a espada de Hades? — insisti — Onde está Ethan?

— Perto daqui — assegurou ela — não deterei vocês. Não será preciso. Em breve Percy Jackson, você terá muitos fantasmas. E se lembrará de mim.

Thalia armou uma flecha e mirou na deusa.

— Se você abrir uma passagem para o mundo, acha mesmo que Cronos vai recompensá-la? Ele vai lançá-la no Tártaro com o restante dos servos de Hades.

Melinoe mostrou os dentes.

— Sua mãe estava certa, Thalia Você é uma menina cheia de raiva. Boa em fugir. Nada além, disso.

A flecha voou, e a deusa dissolveu-se em neblina, deixando para trás apenas o silvo de sua risada. A flecha atingiu as rochas e partiu, inofensiva.

— Fantasma idiota — resmungou Thalia.

Eu podia jurar que ela estava realmente abalada. Os olhos pareciam avermelhados. As mãos tremiam. Nico também estava impressionado, como se estivesse sofrido uma grande desilusão.

— O ladrão... — ele conseguiu dizer — Provavelmente está na caverna. Precisamos detê-lo antes que...

Naquele instante, a última pétala do cravo caiu. A flor ficou preta e murcha.

— Tarde demais — disse eu.

Uma gargalhada masculina ecoou na montanha.

— Está certo quanto a isso — rugiu a voz.

Na boca da caverna estavam duas pessoas: um garoto com tapa-olho e um homem de três metros vestido com um esfarrapado macacão de prisioneiro. O garoto eu reconheci: Ethan Nakamura, filho de Nêmesis. Tinha nas mãos uma espada inacabada, uma lâmina dupla de ferro estígio negro com desenhos de esqueletos gravados em prata. Ela não tinha guarda, mas na base da lâmina havia uma chave dourada, exatamente como a que eu vira na imagem de Perséfone.

O homem gigante ao lado dele tinha olhos inteiramente prateados. Seu rosto era coberto por uma barba falhada e seus cabelos grisalhos eram completamente bagunçados. Ele parecia magro e cansado em suas roupas rasgadas como se tivesse passado os últimos milênios no fundo de um abismo, e mesmo nesse estado debilitado parecia bastante assustador. Ele estendeu a mão e uma lança gigante apareceu. Lembrei do que Thalia dissera sobre Iápeto: Seu nome significa “o Perfurador” porque é isso que ele gosta de fazer com os inimigos.

O titã sorriu cruelmente.

— E agora vou destruir vocês.

— Mestre! — interrompeu Ethan.

Ele estava vestido com uniforme de combate e tinha uma mochila pendurada nas costas. Seu tapa-olho estava torto, e o rosto sujo de ferrugem e suor.

— Nós temos a espada. Devíamos...

— Sim, sim — o titã retrucou, impaciente — você se saiu bem, Nawaka.

— É Nakamura, na verdade.

— Que seja. Tenho certeza de que meu irmão Cronos vai recompensá-lo. Mas agora temos uma matança para cumprir.

— Meu senhor — insistiu Ethan — seu poder não está completamente restabelecido. Devemos subir e convocar seus irmãos do mundo lá em cima. As ordens eram para fugirmos.

O titã virou-se para ele.

— FUGIR! Você disse FUGIR?

O chão retumbou. Ethan despencou sentado e arrastou-se para trás. A espada inacabada de Hades caiu sobre as pedras.

— M-m-mestre, por favor...

— IÁPETO NÃO FOGE! Esperei três eras para ser evocado do abismo. Eu quero vingança, e vou começar matando esses fracotes.

Ele apontou a lança para mim e atacou. Se estivesse no auge de sua força, não tenho dúvidas de que teria me perfurado em cheio. Mesmo fraco e tendo acabado de sair do abismo, o cara era rápido. Ele se moveu como um tornado e atacou tão rapidamente que mal tive tempo de me esquivar antes que a lança se cravasse na pedra onde eu estava. Eu me sentia muito tonto e mal podia segurar minha espada.

Iápeto arrancou a lança do chão, mas quando se virou para mim, Thalia encheu seu flanco de flechas, do ombro ao joelho. Ele rugiu e se virou para ela, parecia mais irado que machucado. Ethan Nakamura tentou desembainhar sua espada, mas Nico gritou:

― Melhor, não.

O chão se abriu diante de Ethan. Três esqueletos em armaduras emergiram e o atacaram, empurrando-o para trás. A espada de Hades continuava repousada nas pedras. Se eu pudesse só chegar até ela... Iápeto golpeou com sua lança e Thalia se esquivou. Ela deixou cair o arco para desembainhar suas facas, mas não resistiria muito no combate corpo a corpo. Nico deixou Ethan para os esqueletos e avançou na direção de Iápeto. Eu já estava à frente dele. Parecia que meu ombro ia explodir, mas me lancei contra o titã e, com um golpe de cima para baixo, cravei a lâmina de Contracorrente em sua panturrilha.

— AHHHHHHRRR!

Icor dourado jorrou da ferida. Iápeto girou e o cabo de sua lança me atingiu, me atirando longe. Eu bati contra as pedras, bem ao lado do Rio Lete.

— VOCÊ MORRE PRIMEIRO! — Iápeto berrou enquanto mancava em minha direção.

Thalia tentou chamar a atenção dele, atingindo-o com um arco elétrico produzido por suas facas, mas isso também deve ter surtido o efeito de uma picada de mosquito. Nico desferiu um golpe com sua espada, mas Iápeto o atirou para o lado sem nem olhar.

— Vou matar todos vocês! Depois lançarei suas almas na escuridão do Tártaro!

Eu estava vendo estrelas. Mal conseguia me mexer. Dois centímetros mais, e teria mergulhado a cabeça no rio. O rio. Engoli em seco, torcendo para que a minha voz ainda tivesse força.

— Você é... você é ainda mais feio que seu filho — provoquei o titã — posso ver de quem ele Atlas herdou sua estupidez.

Iápeto rangeu os dentes. Ele avançou mancando, sua lança erguida. Eu não sabia se teria forças, mas precisava tentar. Iápeto baixou a lança e esquivei-me para o lado. A ponta fincou-se no chão, bem próximo a mim. Eu me estiquei e agarrei a gola da sua camisa, contando o fato de que ele estava ferido e sem equilíbrio. Ele tentou manter-se de pé, mas eu o puxei para frente com todo o peso do meu corpo. Ele cambaleou e caiu, agarrado aos meus braços, em pânico, e juntos mergulhamos no Lete.

BLOOOOOM!

Eu estava imerso em água negra. Rezei a Poseidon que minha proteção não se desfizesse, e, enquanto afundava, percebi que ainda estava seco. Eu sabia meu nome. E ainda segurava o titã pela gola da camisa. A corrente devia tê-lo feito escapar de minhas mãos, mas, de algum modo, o rio formava um canal à minha volta, deixando-nos em paz.

Com o pouco de força que restava, subi para a beira do rio, puxando Iápeto com o meu braço bom. Nós tombamos na margem – eu perfeitamente seco e o titã pingando. Seus olhos inteiramente prateados estavam grandes feito a lua. Thalia e Nico me observavam maravilhados. Lá na caverna, Ethan Nakamura derrubava o ultimo esqueleto. Ele se virou e ficou paralisado ao ver seu aliado titã caído de braços abertos no chão.

— Meu... meu senhor? — chamou.

Iápeto se sentou e fixou o olhar em Ethan. Então olhou para mim e sorriu.

— Oi — disse ele — Quem sou eu?

— Você é meu amigo — soltei — Você é o... Bob.

Isso pareceu agradá-lo bastante.

— Eu sou o seu amigo Bob!

Claramente, Ethan podia ver que as coisas não estavam boas para o seu lado. Ele deu uma olhada para a espada de Hades repousada na poeira. Mas antes que pudesse dar o bote, uma flecha de prata fincou-se no chão a seus pés.

— Nem pensar garoto — Thalia o alertou — mais um passo e eu prego os seus pés nas rochas.

Ethan correu... direto para a caverna de Melinoe. Thalia mirou suas costas, mas eu disse:

— Não. Deixe-o ir.

Ela franziu as sobrancelhas, mas baixou o seu arco. Eu não sabia por que quis poupar Ethan. Acho que já tínhamos lutado o bastante para um dia, e na verdade eu sentia pena dele. Ele estaria numa grande encrenca quando voltasse para falar com Cronos. Nico recolheu a espada de Hades respeitosamente.

— Conseguimos. Nós realmente conseguimos.

— Conseguimos? — perguntou Iápeto. — Eu ajudei?

Forcei um sorriso.

— Sim, Bob. Você se saiu muito bem.


***


Conseguimos uma viagem expressa para o palácio de Hades. Nico mandou um aviso, graças a alguns fantasmas que ele evocou debaixo da terra. E em poucos minutos as Três Fúrias em pessoa chegaram para nos transportar de volta. Elas não estavam muito animadas em carregar também Bob, o titã, mas não tive coragem de deixá-lo para trás, especialmente depois que ele notou um ferimento no meu ombro, disse “Awn” e curou-o com um toque.

Enfim, na hora em que chegamos a sala do trono de Hades, eu me sentia ótimo. O senhor dos mortos sentou-se em seu trono de ossos, com um olhar fixado em nós e acariciando a barba negra como se estivesse imaginando a melhor maneira de nos torturar. Perséfone sentou-se a seu lado, sem falar nada, enquanto Nico explicava nossa aventura.

Antes que lhe entregássemos a espada, insisti para que Hades fizesse o juramento de não usá-la contra os deuses. Seus olhos chamejaram como se ele quisesse me incinerar, mas finalmente ele fez a promessa, com os dentes cerrados. Nico repousou a espada aos pés do pai e fez uma reverência, esperando por uma reação. Hades olhou para a esposa.

— Você desafiou a s minhas ordens diretas.

Eu não sabia sobre o que ele estava falando, mas Perséfone não reagiu, mesmo sob o seu olhar fulminante. Hades se voltou para Nico. Seu olhar se abrandou um pouco, como se pedra fosse mais macia do que aço.

— Você não vai falar sobre isso com ninguém.

— Sim, senhor — Nico concordou.

O deus lançou-me um olhar penetrante.

— E se seus amigos não segurarem as línguas, eu vou cortá-las fora.

— Como queira — falei.

Hades fixou-se na espada. Seus olhos estavam cheios de raiva e de algo mais... algo como apetite.. Ele estalou os dedos. As Fúrias desceram voando do topo de seu trono.

— Devolvam a lamina às forjas — ele disse — Fiquem com os ferreiros até que ela esteja pronta, e então tragam-na de volta a mim.

As Fúrias subiram em círculos com a arma, e fiquei pensando em quanto tempo levaria para que eu me arrependesse daquela dia. Havia brechas em juramentos, e calculei que Hades procuraria por uma.

— Você é sábio, meu senhor — disse Perséfone.

— Se fosse sábio — rosnou ele — eu a trancaria nos seus aposentos. Se você me desobedecer de novo...

Ele deixou a ameaça pairando no ar. Depois estalou os dedos e sumiu na escuridão. Perséfone parecia ainda mais pálida que o normal. Levou um tempo arrumando o vestido e depois se virou para nós.

— Vocês se saíram bem, semideuses. — Ela acenou e três rosas vermelhas apareceram aos nossos pés. — Esmaguem-nas e elas os levarão de volta ao mundo dos vivos. Vocês têm a gratidão do meu senhor.

— Imagino — resmungou Thalia.

— Forjar a espada foi ideia sua — percebi — por isso Hades não estava lá quando você nos deu a missão. Hades não sabia que a espada tinha sumido. Ele nem sabia que ela existia.

— Absurdo — retrucou a deusa.

Nico cerrou os punhos.

— Percy está certo. Você queria que Hades forjasse uma espada. Ele disse que não. Ele sabia que era muito perigoso. Os outros deuses nunca confiariam nele. Isso afetaria o equilíbrio de poder.

— E aí ela foi roubada — completou Thalia — Você trancou o Mundo Inferior, não Hades. Você não podia contar a ele o que havia acontecido. E precisava de nós para recuperar a espada antes que Hades descobrisse. Você nos usou.

Perséfone umedeceu os lábios.

— O importante é que agora Hades aceitou a espada. Ela ficará pronta e meu marido se tornará tão poderoso quanto Zeus ou Poseidon. Nosso reino estará protegido contra Cronos... ou qualquer outro que tente nos ameaçar.

— E nós somos responsáveis por isso — concluí, infeliz.

— Vocês foram muito úteis — Perséfone concordou — talvez uma recompensa pelo seu silêncio...

— Deixe a gente em paz, antes que eu a leve para o Lete e a jogue lá dentro. Bob vai me ajudar. Não é Bob?

— Bob vai ajudar você! — concordou Iápeto alegremente.

Os olhos de Perséfone se arregalaram e ela desapareceu em uma nuvem de margaridas. Nico, Thalia e eu nos despedimos numa sacada com vista para os Asfódelos. Bob, o titã, ficou sentado lá dentro construindo uma casinha com os ossos e rindo cada vez que ela desmoronava.

— Cuidarei dele — disse Nico — ele é inofensivo agora. Talvez... não sei. Talvez possamos transformá-lo em alguma coisa boa.

— Tem certeza de que quer ficar aqui? — perguntei — Perséfone fará da sua vida um inferno.

— Eu preciso — insistiu ele — tenho que me aproximar do meu pai. Ele precisa de um conselheiro melhor.

Não pude aguentar contra isso.

— Bom se você precisar de alguma coisa...

— Eu chamo — prometeu ele.

Ele apertou minha mão e a de Thalia. Virou-se para ir embora, mas me olhou mais uma vez.

— Percy, você esqueceu minha oferta?

Um calafrio desceu pela minha espinha.

— Ainda estou pensando no assunto.

Nico assentiu.

— Bem, quando você estiver pronto.

Depois que ele saiu, Thalia perguntou:

— Que oferta?

— Uma coisa que ele me disse no verão passado — respondi — uma possível maneira de enfrentar Cronos. É perigoso. E eu já vivi perigo demais em um único dia.

Thalia concordou.

— Nesse caso, ainda há tempo para o jantar?

Não pude fazer nada, além de sorrir.

— Depois de tudo isso você está com fome?

— Ei, até os imortais precisam comer. Estou pensando em cheeseburger na McHall’s.

E juntos, pisamos as rosas que nos levariam de volta para o mundo..

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