sábado, 31 de agosto de 2013

O ultimo olimpiano - capitulo 6




                                   Meus biscoitos queiman

Eu não recomendo viajar pelas sombras se você tem medo de:


a) Escuro.

b) Arrepios gelados por sua espinha.

c) Barulhos estranhos.

d) Deslocar-se tão rápido que parece que a pele de seu rosto vai desgrudar.


Em outras palavras, achei incrível. Num minuto, eu não conseguia ver nada. Só conseguia sentir o pelo da Sra O’Leary e meus dedos entrelaçados nos fios de bronze de sua coleira de cachorro. No minuto seguinte, as sombras transformaram-se em uma nova cena.

Estávamos em um penhasco nos bosques de Connecticut. Pelo menos me parecia Connecticut, pelas poucas vezes em que estive lá: muitas árvores, muros baixos de pedras, casas enormes. Sob um dos lados do penhasco, uma estrada surgia por entre um desfiladeiro. Sob outro lado tinha o jardim de alguém. A propriedade era grande – mais mato do que grama. Era uma casa branca de dois andares colonial. Mesmo a propriedade sendo do outro lado da colina da estrada, era como se a casa estivesse no meio do nada. Eu conseguia ver a luz brilhando pela janela da cozinha. Um velho balanço pendia abaixo de uma macieira.

Eu não conseguia imaginar viver numa casa assim, com jardim e tudo. Eu tinha vivido em um apartamento minúsculo ou em um dormitório de escola por toda minha vida. Se essa era a casa de Luke, eu me perguntava por que ele algum dia quis fugir.

Senhora O’Leary cambaleou. Eu me lembrava do que Nico havia dito sobre as viagens pelas sombras cansá-la, então eu desci de suas costas. Ela bocejou, mostrando grandes dentes que botariam medo até em um T-rex, depois rodou em um círculo e deitou tão forte que o chão tremeu.

Nico apareceu bem ao meu lado, como se as sombras tivessem escurecido e criado ele. Ele cambaleou, mas eu o segurei pelo braço.

– Estou bem – ele virou-se, fixando seus olhos.

– Como você fez isso?

– Prática. Umas poucas corridas pelas paredes. Poucas viagens acidentais para a China.

Senhora O’Leary começou a roncar. Se não fosse pelo barulho do tráfego atrás de nós, tenho certeza que ela teria acordado toda vizinhança.

– Você vai tirar um cochilo também? – eu perguntei a Nico.

Ele balançou sua cabeça.

– A primeira vez em que viajei pelas sombras, eu dormi por uma semana. Agora ela só me deixa um pouco sonolento, mas só posso viajar uma ou duas vezes por noite. A Sra O’Leary não vai a lugar algum por enquanto.

– Então teremos de aproveitar o tempo aqui em Connecticut. – Eu olhei para a casa branca colonial. – E agora?

– Tocamos a campainha – Nico disse.



Se eu fosse a mãe de Luke, não teria aberto a porta no meio da noite para duas crianças estranhas. Mas eu não tinha nada a ver com a mãe de Luke.

Eu soube disso antes mesmo de nós chegarmos à porta. A calçada era rodeada por aqueles bichinhos de pelúcia que você vê em lojas de presente. Havia miniaturas de leões, porcos, dragões, hidras, até mesmo um pequeno Minotauro, enrolado em uma fralda de Minotauro. Em razão das condições em que ele estava, a criaturazinha devia de estar sentada ali já há um longo tempo – desde que a neve derreteu com a chegada da primavera, pelo menos.

Uma das hidras tinha uma arvorezinha nascendo por entre seu pescoço. A frente da varanda era cheia de mensageiros dos ventos. Pedaços de vidros brilhantes e metal tilintavam com a brisa. Fios de cobre soavam como a água, o que me lembrou que eu precisava usar o banheiro. Não sei como a Sra. Castellan conseguia suportar esse barulho todo.

A porta da frente era pintada de turquesa. O nome CASTELLAN estava escrito em inglês, e abaixo em Grego: Δτοικήτής φρούρίον.

Nico olhou para mim.

– Preparado?

Ele mal tocou na porta quando ela escancarou-se.

– Luke! – a senhora choramingou feliz.

Ela parecia com alguém que gostava de ficar metendo o dedo em tomadas. Seu cabelo branco estava em tufos em pé por sua cabeça. Seu avental rosa tinha marcas de queimado e manchas de cinzas. Quando ela sorria, seu rosto parecia ser esticado de um jeito não natural, e a luz forte em seus olhos me fez perguntar se ela era cega.

– Oh, meu menininho! – Ela abraçou Nico. Eu estava tentando entender por que ela pensava que Nico era Luke (eles não tinham nada a ver), foi quando ela sorriu para mim e disse:

– Luke!

Ela esqueceu totalmente de Nico e me deu um abraço. Ela cheirava a biscoitos queimados. Ela era tão magra quanto um espantalho, mas isso não a impediu de quase me esmagar.

– Entre! – ela insistiu. – Seu almoço já está pronto!

Ela nos empurrou pra dentro. A sala era mais estranha do que o jardim. Espelhos e velas ocupavam cada lugar vazio. Eu não podia olhar pra lugar algum sem ver meu reflexo. Acima da lareira, um pequeno Hermes pendia do segundo ponteiro de um relógio. Eu tentei imaginar o deus mensageiro se apaixonando por essa senhora, mas a ideia era muito bizarra.

Então eu notei uma porta retrato na lareira, e congelei. Era idêntico ao desenho de Rachel – Luke por volta de uns nove anos, com cabelo loiro e um grande sorriso sem dois dentes. A falta da cicatriz em seu rosto o fez parecer como uma pessoa diferente – descontraído e feliz. Como Rachel podia saber dessa foto?

– Por aqui, querido! – Senhora Castellan me levou para os fundos da casa. – Oh, eu disse pra eles que você viria. Eu sabia!

Ela nos sentou na mesa da cozinha. Empilhado no balcão, havia centenas – eu digo centenas mesmo – de vasilhas com sanduíches de pasta de amendoim e geleia. Os do fundo eram verdes e embolorados como se eles tivessem lá há muito tempo. O cheiro me lembrava do meu armário da sexta série – e isso não era muito bom.

Em cima do fogão havia formas de biscoitos. Cada uma tinha dúzias de biscoitos queimados. Na pia tinha montanhas de garrafas de Kool-Aid. Um bichinho da Medusa estava sobre a torneira como se ela estivesse protegendo a bagunça. A senhora Castellan estava cantarolando enquanto pegava a pasta de amendoim e geleia, começando a fazer novos sanduíches. Algo estava queimando no forno. Tive a sensação de que mais biscoitos estavam a caminho.

Sobre a pia, colocados ao redor da janela, havia dúzias de recortes de figuras de revistas e matérias de jornais – fotos de Hermes dos logos da FTD Flores e Lavadores à Jato, fotos de caduceus de anúncios médicos.

Meu coração apertou. Eu queria sair daquele lugar, mas a Senhora Castellan continuava sorrindo para mim enquanto ela fazia os sanduíches, como se ela estivesse certificando-se de que eu não fugiria.

Nico tossiu.

– Hum, Senhora Castellan?

– Sim?

– Precisamos perguntar sobre seu filho.

– Ah, sim! Eles me disseram que ele não voltaria. Mas eu não acreditei.

Ela apertou minha bochecha com carinho, me dando listras de pasta de amendoim.

– Qual foi a última vez que você viu ele? – Nico perguntou.

Seus olhos perderam o foco.

– Ele era muito novo quando se foi – ela disse melancolicamente. – Terceira série. É muito jovem para fugir! Ele disse que voltaria para o almoço. E eu esperei. Ele gostava de sanduíches de pasta de amendoim, biscoitos e Kool-Aid. Ele voltará para o almoço logo... – Então ela olhou para mim e sorriu. – Por que, Luke, aí está você! Você está lindo. Você tem os olhos de seu pai.

Ela virou para as fotos de Hermes sobre a pia.

– Agora, esse é um bom homem. Sim, ele é. Ele vem me visitar, você sabe.

O relógio tiquetaqueava na sala. Eu limpei a pasta de amendoim de meu rosto e olhei para Nico suplicantemente, tipo, Podemos sair daqui?

– Senhora – Nico disse. – O que, uh...o que aconteceu com seus olhos?

Seu olhar parecia desfocado – como se ela estivesse tentando focar ele por um caleidoscópio.

– Por que, Luke, você sabe da história. Foi bem antes de você nascer, não foi? Eu sempre fui especial, capaz de ver pela...o-que-todos-chamam.

– A Névoa? – Eu disse.

– Sim, querido. – Ela concordou animadamente. – E eles me ofereceram um emprego importante. Pelo quão especial eu era!

Eu olhei para o Nico, mas ele parecia tão confuso quanto eu.

– Que tipo de trabalho? – Eu perguntei. – O que aconteceu?

A Senhora Castellan franziu a testa. Sua faca pairou sobre o sanduíche.

– Meu querido, não funcionou, não é? Seu pai me avisou para não tentar. Ele disse que era muito perigoso. Mas eu tinha que tentar. Era meu destino! E agora...eu ainda não consigo tirar as imagens da minha cabeça. Elas fazem as coisas parecerem tão estranhas. Você gostaria de alguns biscoitos?

Ela tirou a forma do forno e despejou um monte de biscoitos de lascas de chocolate carbonizados.

– Luke era tão carinhoso – Senhora Catellan murmurou. – Você sabe que ele foi embora para me proteger. Ele disse que se ele partisse, os monstros parariam de me ameaçar. Mas eu disse a ele que os monstros não eram problema! Eles sentavam na calçada o dia todo, e eles nunca entravam. – Ela pegou a Medusa de pelúcia do parapeito da janela. – Eles entravam, Dona Medusa? Não, sem problema algum. – Ela olhou para mim alegremente. – Estou tão feliz que você tenha voltado para casa. Sabia que você não iria me decepcionar!

Eu afundei em minha cadeira. Eu me imaginei como Luke, sentado nessa mesa, oito ou nove anos, e começando a perceber que minha mãe não estava realmente ali.

– Senhora Castellan – eu disse.

– Mãe – ela corrigiu.

– Hum, sim. Você já viu o Luke desde que ele saiu de casa?

– Mas é claro!

Eu não sabia se ela estava imaginando isso ou não. De tudo o que eu sabia, sempre que o carteiro batia na sua porta, ele era o Luke. Mas Nico se endireitou esperançosamente.

– Quando? – ele perguntou. – Quando Luke visitou a senhora da última vez?

– Bem, foi...Oh meu deus... – uma sombra passou por seu rosto. – Da última vez, ele estava tão diferente. Uma cicatriz. Uma cicatriz horrível, e sua voz estava cheia de dor...

– Seus olhos – eu disse. – Eles estavam dourados?

– Dourado? – Ela piscou. – Não. Que bobagem. Luke tem olhos azuis. Lindos olhos azuis!

Então Luke tinha vindo aqui mesmo, e isso tinha acontecido antes do último verão – antes dele se tornar Cronos.

– Senhora Catellan? – Nico pôs sua mão no velho ombro da mulher. – Isso é muito importante. Ele te pediu algo?

Ela se endireitou como se tentasse se lembrar.

– Minha - minha benção. Não é meigo? – Ela olhou para nós insegura. – Ele estava indo para o rio, e ele disse que precisava da minha benção. Eu a dei para ele. É claro que dei.

Nico olhou para mim triunfante.

– Obrigado, senhora. Essa era a informação que nós...

Senhora Catellan ofegou. Ela se dobrou, e sua bandeja de biscoitos caiu no chão. Nico e eu pulamos da mesa.

– AHHHH – ela endireitou-se.

Eu me afastei e quase cai por cima da mesa, por causa de seus olhos – eles estavam com um brilho verde.

– Minha criança – ela falou com uma voz muito mais profunda. – Deve protegê-lo! Hermes, ajude! Meu filho não! Não é o seu destino - não!

Ela pegou Nico pelos ombros e começou a chacoalhá-lo como se fosse para fazê-lo entender.

– Não o seu destino!

Nico deu um grito engasgado e a afastou. Ele pegou no punho de sua espada.

– Percy, precisamos sair...

De repente a Senhora Castellan caiu. Eu deslizei para frente e a peguei antes que ela pudesse bater no tampo da mesa. Eu consegui colocá-la numa cadeira.

– Senhora C.? – perguntei.

Ela murmurou algo incompreensível e sacudiu a cabeça.

– Jesus. Eu...eu deixei os biscoitos cair. Que descuido meu.

Ela piscou, e seus olhos voltaram ao normal – ou pelo menos, o que eles eram antes. O brilho verde tinha ido embora.

– Você está bem? – eu perguntei.

– Mas é claro, meu querido. Estou bem. Por que pergunta?

Eu olhei para Nico, ele mexeu sua boca, falando a palavra Sair.

– Senhoria C., você estava nos contando algo – eu disse. – Algo sobre seu filho.

– Estava? – ela disse sonhadoramente. – Sim, seus olhos azuis. Estávamos falando de seus olhos azuis. Um belo rapaz!

– Temos que ir – Nico disse com urgência. – Diremos a Luke...uh, diremos a ele que você mandou um oi.

– Mas vocês não podem ir! – Senhora Castellan bateu os pés, e eu me afastei. Era ridículo sentir medo de uma senhora, mas o modo como sua voz mudou, o modo como ela chacoalhou Nico...

– Hermes chegará logo – ela prometeu. – Ele vai querer ver seu garoto!

– Talvez da próxima vez – eu disse. – Obrigado por... – Eu olhei para os biscoitos queimados no chão. – Obrigado por tudo.

Ela tentou nos parar, oferecer Kool-Aid, mas eu tinha que sair daquela casa. Na varanda, ela agarrou minha cintura e eu quase pulei.

– Luke, se cuide pelo menos. Me prometa que você vai se cuidar.

– Eu irei...mãe.

Aquilo a fez sorrir. Ela soltou minha cintura, e enquanto ela fechava a porta da frente eu podia ouvir ela falando para as velas:

– Você ouviram isso? Ele se cuidará. Eu disse a vocês que ele iria!

Enquanto a porta fechava, Nico e eu corremos. Os bichinhos de pelúcia da varanda pareciam sorrir para nós enquanto passávamos.

De volta ao penhasco, Senhora O’Leary parecia ter encontrado uma amiga. Uma agradável fogueira crepitava em um anel de rochas. Uma garota por volta dos oito anos estava sentada com pernas cruzadas próxima a Senhora O’Leary, acariciando as orelhas do cão infernal.

A garota tinha um cabelo castanho cinzento e vestia um vestido simples marrom. Ela usava um lenço sobre sua cabeça, então ela parecia uma criança da época dos pioneiros – como o fantasma de Uma casa na campina ou algo assim. Ela mexeu no fogo com um graveto, e ele pareceu brilhar um vermelho mais forte do que o fogo normal.

– Olá – ela disse.

Meu primeiro pensamento foi: um monstro. Quando você é um semideus e você encontra uma garotinha meiga sozinha na floresta – essa é uma ótima hora de você pegar sua espada e atacar. Mas, o encontro com a Senhora Castellan havia me abalado muito.

Mas Nico se curvou para a menina.

– Olá de novo, Senhora.

Ela me estudou com os olhos tão vermelhos quanto bolas de fogo. Eu decidi que o mais seguro era me curvar.

– Sente-se, Percy Jackson – ela disse. – Vocês gostariam de jantar?

Depois de olhar sanduíches de pasta de amendoim mofados e biscoitos queimados, eu não estava com muito apetite, mas a garota balançou sua mão e um piquenique apareceu em cima do fogo. Havia pratos de rosbife, batatas fritas, cenouras amanteigadas, pão fresco, e um monte de outras comidas que eu não via fazia um tempo. Meu estômago começou a roncar. Esse era o tipo de comida caseira que as pessoas supostamente deveriam ter, mas elas nunca tinham. A garota fez um biscoito de um metro e meio aparecer para Senhora O’Leary, que começou a deixá-lo em migalhas.

Sentei perto de Nico. Pegamos nossa comida, e eu estava prestes a comer quando eu pensei melhor. Tirei parte da minha comida para as chamas, do mesmo jeito que fazíamos no acampamento.

– Para os deuses – eu disse.

A garotinha sorriu.

– Obrigada. Na oferta da chama, eu tenho um pouco de cada sacrifício, você sabe.

– Eu te reconheço agora – eu disse. – Quando eu cheguei ao acampamento pela primeira vez, você estava sentada perto do fogo, no meio do pavilhão.

– Você não parou para conversar – a garota se lembrou melancolicamente. – Aliás, a maioria nunca o faz. Nico falou comigo. Ele foi o primeiro em muitos anos. Todos apressados. Sem tempo para visitar a família.

– Você é Héstia – eu disse. – A deusa da lareira.

Ela concordou.

Ok...assim ela parecia ter oito anos. Eu não perguntei. Aprendi que deuses assumem a forma do que quiserem.

– Minha senhora – Nico perguntou, – por que você não está com os outros Olimpianos, lutando contra Tifão?

– Eu não sou muito de briga. – Seus olhos vermelhos faiscaram. Eu percebi que eles só estavam refletindo as chamas. Eles eram ocupados por fogo – mas não como os olhos de Ares. Os olhos dela eram cômodos e quentes. – Além do mais – ela disse – alguém tem que manter as chamas caseiras acesas, enquanto os deuses estão ausentes.

– Então você está protegendo o Monte Olimpo? – eu perguntei.

– “Proteger” pode ser uma palavra muito forte. Mas se você precisar de algum lugar quente e comida caseira, você é bem vindo. Agora coma.

Meu prato estava cheio antes que eu percebesse. Nico começou rapidamente.

– Isso aqui está muito bom – eu disse. – Obrigado, Héstia.

Ela acenou com a cabeça.

– Vocês fizeram uma boa visita a Senhora Castellan?

Por um momento eu havia me esquecido da velha senhora com seus olhos brilhantes e seu sorriso maníaco, o modo como ela de repente pareceu estar possuída.

– O que ela tem de errado, exatamente? – eu perguntei.

– Ela nasceu com um dom – Héstia disse. – Ela pode ver através da Névoa.

– Como minha mãe – eu disse. E eu também pensei: Igual a Rachel. – Mas aquela coisa brilhando em seus olhos...

– Alguns lidam com a maldição da visão melhores que os outros – a deusa disse tristemente. – Por um tempo, a Senhora Castellan teve muitos talentos. Ela atraiu a atenção de Hermes. Eles tiveram um lindo bebezinho. Durante um curto tempo, ela foi feliz. E então ela foi longe demais.

Lembrei do que a Senhora Castellan havia dito: Eles me ofereceram um trabalho importante... Não funcionou. Perguntei-me que tipo de trabalho a deixou assim.

– Em um minuto ela estava toda feliz – eu disse. – E depois ela enlouqueceu sobre o destino de seu filho, como se ela soubesse que ele tivesse virado Cronos. O que aconteceu para... ela se dividir daquele jeito?

O rosto da deusa escureceu.

– Essa é uma história que eu não gosto de contar. Mas a Senhora Castellan viu demais. Se você quer entender o Luke, primeiro você tem que entender sua família.

Eu pensei nas tristes fotos de Hermes coladas acima da pia da Senhora Castellan. Perguntava-me se ela já era louca quando Luke era pequeno. Aqueles olhos verdes poderiam assustar seriamente uma criança de nove anos. E se Hermes nunca o tinha visitado, o deixado sozinho com sua mãe durante todos esses anos...

– Não me surpreendo por Luke ter fugido – eu disse. – Digo, não foi certo deixar sua mãe assim, mas ainda - ele era só uma criança. Hermes não devia tê-los abandonado.

Héstia acariciou atrás das orelhas de Senhora O’Leary. O cão infernal abanou seu rabo e acidentalmente bateu em uma árvore.

– É fácil julgar os outros – Héstia alertou. – Mas você seguiria os passos de Luke? Procurar pelos mesmos poderes?

Nico abaixou seu prato.

– Não temos escolha, minha senhora. É o único jeito de Percy ter uma chance.

– Hum.

Héstia abriu suas mãos e o fogo zuniu. Chamas atingiram dez metros de altura no ar. O calor me atingiu no rosto. Depois o fogo voltou ao normal.

– Nem todos os poderes são incríveis. – Héstia olhou para mim. – Às vezes o maior poder que se tem é o poder de ceder. Você acredita em mim?

– Aham – eu disse.

Qualquer coisa para ela manter as chamas como estavam. A deusa sorriu.

– Você é um bom herói, Percy Jackson. Não é muito orgulhoso. Eu gosto disso. Mas você ainda tem muito que aprender. Quando Dionísio se tornou um deus, eu dei meu trono para ele. Era o único jeito de evitar uma guerra interna entre os deuses.

– Isso desequilibrou o Conselho – eu lembrei. – De repente havia sete caras e cinco garotas.

Héstia deu de ombros.

– Essa era a melhor solução, não a perfeita. Agora eu controlo o fogo. Eu desapareço vagarosamente nos fundos. Ninguém jamais escreverá poemas épicos sobre os feitos de Héstia. A maioria dos semideuses nem param para falar comigo. Mas isso não importa. Eu mantenho a paz. Eu cedo quando é necessário. Você é capaz de fazer isso?

– Eu não entendo o que você quer dizer.

Ela me estudou.

– Talvez ainda não. Mas em breve entenderá. Você continuará com sua missão?

– É por isso que você está aqui - para me alertar sobre o caminho?

Héstia balançou sua cabeça.

– Estou aqui porque quando tudo falha, quando todos os outros deuses tiverem ido para a guerra, serei a única restante. Casa. Fogo. Eu sou a última Olimpiana. Você deve se lembrar de mim quando você encarar a sua última decisão.

Eu não gostei do modo como ela falou última.

Olhei para Nico, e depois de volta aos olhos acolhedores de Héstia.

– Eu tenho que continuar minha senhora. Eu tenho que parar Luke... digo Cronos.

Héstia acenou.

– Muito bem. Eu não posso ser de muita ajuda, além do que eu já te disse. Mas desde que você se sacrifique por mim, eu posso retornar para seu próprio fogo. Te verei de novo, Percy, no Olimpo.

Seu tom era agourento, talvez nosso próximo encontro não fosse muito feliz. A deusa balançou sua mão e tudo desapareceu.

De repente eu estava em casa. Nico e eu estávamos sentados no sofá do apartamento de minha mãe no Upper East Side. Essas eram as boas notícias. As más notícias eram que o resto da sala estava ocupada por Senhora O’Leary.

Eu ouvi um grito abafado do quarto. A voz de Paul disse:

– Quem pôs essa parede de pelo no caminho da porta?

– Percy? – minha mãe chamou. – Você está aqui? Está tudo bem?

– Estou aqui! – eu gritei.

“WOOF!”

Sra O’Leary tentou virar para achar minha mãe, derrubando todos os quadros das paredes. Ela só havia encontrado minha mãe uma vez (longa história), mas ela a ama.

Demorou um tempo, mas finalmente conseguimos que as coisas dessem certo. Depois de destruir a maioria dos móveis da sala e provavelmente ter deixado nossos vizinhos muito irritados, conseguimos tirar meus pais do quarto para cozinha, onde sentamos à mesa. Senhora O’Leary ainda ocupando toda a sala, mas ela estava com a cabeça na porta da cozinha, então ela podia nos ver, o que a deixou feliz.

Minha mãe jogou para ela um bife tamanho família pelo chão, que desapareceu na sua boca. Paul serviu limonada para o resto de nós enquanto eu contava sobre nossa visita à Connecticut.

– Então é verdade.

Paul me olhava como se ele nunca tivesse me visto antes. Ele estava vestindo seu roupão branco, agora coberto por pelo de cão infernal, e seu cabelo grisalho estava bagunçado em várias direções.

– Todo o negócio de monstros, e ser um semideus... então é mesmo verdade.

Eu concordei. Eu tinha contado a Paul no último outono, quem eu era. Minha mãe tinha me dado uma força. Mas até esse momento, eu não achei que ele realmente tivesse acreditado em nós.

– Desculpe sobre Senhora O’Leary – eu disse – por ter destruído a sala e tudo mais.

Paul gargalhou como se ele estivesse contentíssimo.

– Você está brincando? Isso é incrível! Digo, quando eu vi as marcas no Prius, eu pensei que talvez fosse verdade. Mas isso!

Ele acariciou o focinho de Senhora O’Leary. A sala chacoalhava – BOOM,

BOOM, BOOM – que poderia ser o batalhão da SWAT arrombando a porta ou a Sra O’Leary abanando seu rabo.

Eu não pude conter o sorriso. Paul era um cara muito legal, mesmo ele sendo meu professor de Inglês assim como meu padrasto.

– Obrigado por não pirar – eu disse.

– Ah, mas eu estou pirando – ele garantiu, com seus olhos bem abertos. – Eu só acho isso incrível!

– É, bem – eu disse, – talvez você não fique tão animado quando ouvir o que vai acontecer.

Eu contei a Paul e minha mãe sobre Tifão, e os deuses, e a batalha que estava prestes a acontecer. Depois eu disse a eles o plano de Nico. Minha mãe apertou seus dedos em volta do copo de limonada. Ela estava vestindo seu roupão de flanela azul, e seu cabelo estava amarrado para trás. Ela tinha começado a escrever um romance, como ela sempre quis fazer há anos, e eu poderia dizer que ela estava escrevendo até tarde da noite, porque os círculos embaixo de seus olhos estavam mais escuros do que o de costume.

Atrás dela, na janela da cozinha, a renda lunar brilhava com um tom prateado no vaso de flores. Eu trouxe a planta mágica da Ilha de Calypso no verão passado, e ela florescia muito sobre os cuidados de minha mãe. O cheiro sempre me acalmava, mas também me deixava triste, porque me fazia lembrar de amigos perdidos.

Minha mãe respirou fundo, como se ela estivesse pensando em como me dizer não.

– Percy, é muito perigoso – ela disse. – Até mesmo para você.

– Mãe, eu sei. Eu poderia morrer. Nico me explicou isso. Mas se nós não tentarmos...

– Todos morreremos – Nico disse. Ele não tinha tocado em sua limonada. – Senhora Jackson, não teremos chance contra uma invasão. E haverá uma invasão.

– Uma invasão em Nova York? – Paul disse. – Isso é possível? Como não poderemos ver...os monstros?

Ele disse a palavra como se ainda não acreditasse que ela fosse real.

– Eu não sei – eu admiti. – Eu não vejo como Cronos conseguirá marchar por Manhattan, mas a Névoa é forte. Tifão está atravessando o país agora mesmo, e os mortais pensam que ele é um conjunto de tempestades.

– Senhora Jackson – Nico disse, – Percy precisa de sua benção. O processo tem que começar desse jeito. Eu não tinha certeza antes de conhecer a mãe de Luke, mas agora estou certo. Isso já foi feito com sucesso duas vezes. Ambas as vezes, a mãe teve que dar a sua benção. Ela tem que estar disposta a deixar seu filho se arriscar.

– Você quer que eu abençoe isso? – Ela balançou sua cabeça. – É loucura. Percy, por favor...

– Mãe, eu não consigo fazer isso sem você.

– E se você sobreviver esse... esse processo?

– Então eu irei para guerra – eu disse. – Eu contra Cronos. E só um de nós sobreviverá.

Eu não disse a profecia completa – sobre a minha alma ser cortada ao meio e ser o fim de meus dias. Ela não precisava saber que eu estava provavelmente amaldiçoado. Eu só podia esperar que eu fosse capaz de parar Cronos e salvar o resto do mundo antes de eu morrer.

– Você é o meu filho – ela disse melancolicamente. – Eu não posso só...

Eu teria que insistir para fazê-la concordar se eu queria ela de acordo. Mas eu também não queria. Eu me lembrava da pobre Senhora Castellan em sua cozinha, esperando seu filho voltar para casa. E eu percebi o quão sortudo eu era. Minha mãe sempre esteve comigo, sempre tentando fazer as coisas o mais normal possível, até com deuses e monstros e essas coisas. Ela tolerava eu sair em aventuras, mas agora eu estava pedindo sua benção para algo que provavelmente me mataria.

Eu olhei para os olhos de Paul, e algum tipo de entendimento passou entre nós.

– Sally. – Ele pôs suas mão nas mãos de minha mãe. – Eu não posso afirmar saber tudo o que você e Percy passaram todos esses anos. Mas parece que... que Percy está fazendo algo nobre. Eu gostaria de ter essa coragem.

Senti um bolo em minha garganta. Eu não recebia tantos elogios assim. Minha mãe olhou para sua limonada. Ela parecia estar tentando não chorar. Eu pensei no que Héstia havia dito, sobre o quão difícil era ceder, e eu percebi que talvez minha mãe estivesse descobrindo isso agora.

– Percy – ela disse, – eu te dou minha benção.

Eu não senti nada de diferente. Nenhum brilho mágico encheu a cozinha, nem nada disso.

Eu olhei para Nico.

Ele parecia mais ansioso do que nunca, mas ele acenou com a cabeça.

– Está na hora.

– Percy – minha mãe disse. – Uma última coisa. Se você...se você sobreviver a essa luta com Cronos, me mande um sinal.

Ela revirou sua bolsa e me deu seu celular.

– Mãe – eu disse, – você sabe que semideuses e celulares...

– Eu sei – ela disse. – Mas só por precaução. Se você não tiver em condições de ligar...talvez só um sinal que eu pudesse ver em qualquer lugar de Manhattan. Pra eu saber que você está bem.

– Como Teseu – Paul sugeriu. – Ele deveria ter acendido velas brancas quando ele chegou a casa em Atenas.

– Tirando a parte que ele esqueceu – Nico disse. – E seu pai pulou do telhado do palácio em desespero. Mas fora isso, é uma ótima ideia.

– Que tal uma bandeira ou uma luz? – minha mãe disse. – Do Olimpo – O Empire State.

– Algo azul – eu disse.

Tivemos piadas durante anos sobre comida azul. Era minha cor favorita, e minha mãe se desvirava por causa do meu senso de humor. Todo ano, meu bolo de aniversario, meu ovo da Páscoa, minhas bengalas de açúcar de Natal, tudo tinha que ser azul.

– Sim – minha mãe concordou. – Eu estarei de olho em um sinal azul. E eu tentarei evitar pular de telhados de palácios.

Ela me deu um último abraço, e eu tentei não me sentir como se fosse uma despedida. Eu dei as mãos ao Paul. Depois Nico e eu caminhos pela porta da cozinha e olhamos para Senhora O’Leary.

– Desculpe, garota – eu disse. – Hora da viagem pelas sombras de novo.

Ela gemeu e cruzou suas patas em cima de seu focinho.

– Pra onde agora? – perguntei a Nico. – Los Angeles?

– Não precisa – ele disse. – Existe uma entrada mais perto pra o Mundo Inferior.

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