terça-feira, 15 de outubro de 2013

Capitulo X - Frank






FRANK NÃO LEMBRAVA MUITO SOBRE o funeral em si. Mas ele se lembrava das horas que o antecederam – sua avó saindo para o quintal, para encontrá-lo atirando flechas em sua coleção de porcelana.
A casa de sua avó era uma mansão de pedras cinzentas desconexas de 4 hectares no norte de Vancouver. Seu quintal corria em linha reta até o Lynn Canyon Park. A manhã estava fria e chuvosa, porém Frank não sentia o frio. Ele usava um terno de lã preto e um sobretudo que haviam pertencido a seu avô. Frank se sentiu assustado e chateado ao descobrir que se encaixavam muito bem nele. As roupas cheiravam a lã molhada e jasmim. O tecido causava um comichão, mas era quente. Com seu arco e flecha, ele devia parecer um mordomo muito perigoso.
Ele havia carregado algumas das porcelanas de sua avó em um carrinho de mão e levou-as para o quintal, onde as estabeleceu como alvos em placas na cerca velha à beira da propriedade. Ele estava puxando seu arco há tanto tempo que perdeu os sentidos dos dedos, com cada seta ele imaginava que estava derrubando seus problemas.
Atiradores no Afeganistão. Crac. Um bule explodiu com uma flecha no meio.
A medalha de sacrifício, um disco de prata em uma fita vermelha e preta, dado pela morte no exercício de suas funções, fora apresentada à Frank como se fosse algo importante, algo que fazia tudo ficar bem. Crac. Uma xícara girou para dentro da floresta.
— Sua mãe foi uma heroína — disse-lhe o oficial. — A capitã Emily Zhang morreu para salvar seus companheiros.
Crac. O prato azul e branco dividido em pedaços.
Sua avó as vezes lhe dava um sermão: Homens não choram, especialmente os homens Zhang. Você vai resistir, Fai.
Ninguém o chamava de Fai, exceto sua avó.
Que tipo de nome é Frank? Ela ralhava. Isso não é um nome chinês.
Eu não sou chinês, Frank pensava, mas não ousava dizer isso.
Sua mãe lhe tinha dito anos atrás: Não se pode discutir com a avó. Isso só vai fazer você sofrer mais. Ela tinha razão. E agora Frank não tinha ninguém, exceto sua avó.
Houve uma baque. Uma quarta seta acertou a trave da cerca e ficou presa lá, tremendo.
— Fai — sua avó chamou.
Frank se virou.
Ela estava segurando uma caixa de sapatos de mogno que Frank nunca tinha visto antes. Com o seu vestido de gola alta preta e um sério coque de cabelos grisalhos, ela parecia uma professora da escola dos anos 1800.
Ela analisou o massacre: a porcelana na carroça, os cacos de seu jogo de chá favorito espalhados pelo gramado, as setas de Frank saindo do chão, das árvores, dos postes e uma na cabeça de um sorridente gnomo de jardim.
Frank pensou que ela iria gritar ou bater nele com a caixa. Ele nunca fez nada tão ruim antes. Nunca se sentira com tanta raiva. O rosto de sua avó estava cheio de amargura e desaprovação. Ela não se parecia em nada com a mãe de Frank. Ele se perguntou como sua mãe havia se tornado tão legal – sempre rindo, sempre gentil. Frank não conseguia imaginar sua mãe crescendo com a avó mais do que ele conseguia imaginá-la no campo de batalha – embora as duas situações, possivelmente não fossem assim tão diferentes.
Ele esperou sua avó explodir. Talvez ele fosse triturado e não tivesse que ir ao funeral. Ele queria machucá-la por ser tão má o tempo todo, por deixar sua mãe ir para a guerra, por repreendê-lo para superar isso. Tudo com o que ela se preocupava era com sua coleção estúpida.
— Pare com esse comportamento ridículo — disse a avó. Ela não parecia muito irritada. — Você não está nesse nível.
E para a surpresa de Frank, ela chutou para o lado uma de suas xícaras de chá favoritas.
— O carro estará aqui em breve — ela falou. — Precisamos conversar.
Frank ficou pasmo. Ele olhou mais de perto a caixa de mogno. Por um momento horrível, ele se perguntou se ela continha as cinzas de sua mãe, mas isso era impossível. Sua avó tinha lhe dito que haveria um enterro militar. Então porque a avó segurava a caixa tão cautelosamente como se seu conteúdo a entristecesse?
 — Venha para dentro.
Sem esperar para ver se ele a seguiria, ela virou-se e marchou em direção à casa. Frank a acompanhou. Na sala, Frank sentou em um sofá de veludo, cercado por reconhecidas fotos da família, vasos de porcelana que eram muito grandes para o seu carrinho e bandeiras vermelhas com caligrafia chinesa. Frank não sabia o que estava escrito. Ele nunca teve muito interesse em aprender. Também não sabia quem a maioria das pessoas nas fotografias eram.
Sempre que a avó começava a lhe falar sobre seus antepassados, como eles vieram da China e prosperaram no negócio de importação/exportação, tornando-se, em Vancouver, uma das mais ricas famílias chinesas, bem, isso era chato. Frank era da quarta geração canadense. E ele não se importava com a China e todas estas antiguidades cheias de mofo. Os únicos caracteres chineses que ele poderia reconhecer eram seu nome de família: Zhang. Mestre dos arcos. Isso era legal.
Sua avó sentou-se ao seu lado, sua postura rígida, com as mãos cruzadas sobre a caixa.
— Sua mãe queria que isso fosse seu — ela disse com relutância. — Ela manteve-ao desde que você era um bebê. Quando foi embora para a guerra, confiou-o a mim. Mas agora ela se foi. E logo você estará indo também.
— Indo? Indo aonde? — O estômago de Frank tremulava.
— Eu estou velha — disse a avó, como se isso fosse um anúncio surpreendente. — Tenho minha própria consulta com a morte em breve. Não posso lhe ensinar as habilidades que vai precisar, e não posso manter esse fardo. Se algo acontecer a ele, eu nunca poderia me perdoar. Você iria morrer.
Frank não tinha certeza se tinha ouvido direito. Parecia que ela tinha dito que a sua vida dependia daquela caixa. Ele se perguntou por que nunca tinha visto aquilo antes. Ela deve ter mantido-o trancado no sótão, o único lugar que Frank era proibido de explorar.
Ela sempre disse que mantinha seus tesouros mais valiosos lá em cima. Entregou a caixa para ele. Frank abriu a tampa com os dedos trêmulos. No interior, com um revestimento almofadado em veludo, havia um aterrorizante, capaz de alterar vidas, incrivelmente importante... pedaço de madeira.
Parecia madeira flutuante – dura e lisa, esculpida em uma forma ondulada. Era do tamanho de um controle remoto da TV. A ponta estava carbonizada. Frank tocou no final queimado. Ainda estava quente. As cinzas deixaram uma mancha negra em seu dedo.
— É um pedaço de madeira — ele falou.
Ele não conseguia descobrir o porquê sua avó estava agindo de modo tão tenso e sério.
Seus olhos brilhavam.
— Fai, você conhece profecias? Você conhece os deuses?
As perguntas o deixaram desconfortável. Ele pensou nas bobas estátuas de ouro dos imortais chineses que sua avó tinha, suas superstições sobre a colocação de móveis em determinados lugares e evitar números de azar. Profecias o faziam pensar em biscoitos da sorte, que nem sequer eram chineses, não realmente, mas alguns garotos na escola zombavam dele sobre coisas estúpidas como esta: Confúcio dizia... e todo esse lixo. Frank nunca tinha ido para a China. Ele não queria nada com ela. Mas, claro, a avó não queria ouvir isso.
— Um pouco, vó — ele disse — não muito.
— A maioria teria zombado do conto de sua mãe — ela disse — mas eu não. Eu sei de profecias e deuses. Gregos, romanos, se entrelaçam com chineses em nossa família. Eu não tive dúvida que o que ela me contou sobre seu pai era verdade.
— Espere... o quê?
— Seu pai era um deus — ela disse claramente.
Se sua avó tivesse um senso de humor, Frank teria pensado que era uma brincadeira, mas sua avó nunca tinha feito uma brincadeira antes, estaria senil?
— Pare de me olhar assim — disse a avó. — Minha mente não está confusa. Você nunca se perguntou por que ele nunca voltou?
— Ele era... — Frank vacilou. A perda de sua mãe foi dolorosa o suficiente. Ele não queria pensar sobre seu pai, também. — Ele estava no exército, como a mamãe. Ele desapareceu em ação. No Iraque.
— Bah. Ele era um deus. Ele se apaixonou por sua mãe, porque ela era uma guerreira nata. Ela era como eu, forte, corajosa, boa, bela.
Forte e corajosa, Frank concordava. Agora retratar a avó tão boa e bela era mais difícil.
Ele ainda suspeitava que ela podia estar perdendo sua sanidade, porém perguntou:
— Que tipo de deus?
— Romano — disse ela. — Além disso eu não sei. Sua mãe não quis dizer, ou talvez ela não soubesse. Não é nenhuma surpresa um deus se apaixonar por ela, dada a nossa família. Ele deve ter sabido que ela era de sangue antigo.
— Espere... somos chineses. Por que deuses romanos iriam querer namorar uma canadense/chinesa?
As narinas da avó queimaram.
— Se você se preocupasse em aprender a história da família, Fai, poderia saber isso. China e Roma não são tão diferentes, nem tão separadas como você parece acreditar. Nossa família é da província de Gansu, uma cidade, uma vez chamado Li-Jien. E antes que... como eu disse sangue antigo. O sangue dos príncipes e heróis.
Frank só encarava-a.
Ela suspirou, exasperada.
— Minhas palavras são desperdiçadas neste bezerro! Você vai aprender a verdade quando for para o acampamento. Talvez o seu pai vá reclamá-lo. Mas por enquanto, devo explicar sobre a lenha.
Ela apontou para a grande lareira de pedra.
— Pouco depois que você nasceu, uma visitante apareceu em nosso lar. Sua mãe e eu estávamos sentadas aqui no sofá, exatamente onde nós estamos sentados. Você era uma coisa minúscula, enrolado em um cobertor azul, e ela aninhava-o em seus braços.
Soou como uma doce memória, mas a avó disse num tom amargo, como se ela soubesse, até então, que Frank iria se transformar em uma grande madeireira imbecil.
— A mulher apareceu no fogo — continuou ela. — Ela era uma mulher branca usando um vestido de seda azul, com uma capa estranha como a pele de uma cabra.
— Uma cabra — disse Frank entorpecido.
A avó fez uma careta.
— Sim, limpe os ouvidos, Fai Zhang! Estou velha demais para contar todas as histórias duas vezes! A mulher com a pele de cabra era uma deusa. Eu posso sempre dizer estas coisas. Ela sorriu para o bebê que você era e disse para sua mãe, em mandarim perfeito, nada menos: “Ele irá fechar o círculo. Irá fazer a sua família retornar para suas raízes e trazer-lhe grande honra.”
A avó bufou.
— Eu não discuto com deusas, mas talvez esta não veja o futuro com muita clareza. Seja qual for o caso, ela disse, “Ele vai ir para o acampamento e restaurar sua reputação lá. Ele irá libertar Tânatos de suas correntes de gelo.’”
— Espere, quem?
— Tânatos — disse a avó, impaciente. — O nome grego para a Morte. Agora posso continuar sem interrupções? Pois bem a deusa disse: “O sangue de Pylos é forte nessa criança pelo lado de sua mãe. Ele terá o dom da família Zhang, mas também terá os poderes de seu pai.”
De repente, a história da família Zhang não parecia tão chata. Ele queria desesperadamente perguntar o que aquilo significava – poderes, dom, sangue de Pylos. O que era esse acampamento, e quem era seu pai? Mas ele não queria interromper a avó novamente. Ele queria que ela continuasse falando.
— Nenhum poder vem sem um preço, Fai — disse ela. — Antes da deusa desaparecer, ela apontou para o fogo e disse: “Ele vai ser o mais forte de seu clã, o maior. Mas as Parcas decretaram que ele será também o mais vulnerável. Sua vida vai queimar brilhante e curta. Quando aquele pedaço de lenha for consumido na borda do fogo, o seu filho estará destinado a morrer.”
Frank mal podia respirar. Ele olhou para a caixa em seu colo, e as manchas de cinzas em seu dedo. A história parecia ridícula, mas de repente o pedaço de lenha parecia mais sinistro, mais frio e mais pesado.
— Isso... isso.
— Sim, meu boi estúpido — disse a avó. — Esse é o graveto. A deusa desapareceu, e eu tirei a madeira do fogo imediatamente. Temos mantido guardado desde então.
— Se ele queimar, eu morrerei?
— Não é tão estranho — disse a avó. — Romanos, chineses os destinos dos homens muitas vezes podem ser previstos, e às vezes adiados, pelo menos por um tempo. A lenha está em sua posse agora. Mantenha-a por perto. Enquanto ela estiver segura, você estará seguro.
Frank balançou a cabeça. Ele queria protestar que isso era apenas uma lenda estúpida. Talvez a avó estivesse tentando assustá-lo como uma espécie de vingança por quebrar sua porcelana. Mas os olhos de sua avó eram desafiadores, era como se ela dissesse: Se não acredita, queime-a .
Frank fechou a caixa.
— Se é tão perigoso, porque não revesti-lo de uma substância que não queime, como pedra ou aço? Porque não colocá-lo em um cofre?
— O que aconteceria — perguntou a avó. — Se tivéssemos revestido a madeira em outra substância? Será que você também sufocaria? Eu não sei. Sua mãe não iria assumir o risco. Ela não podia carregar a madeira com ela, por medo de algo dar errado. Bancos podem ser roubados. Edifícios podem queimar. Coisas estranhas conspiram quando se tenta enganar o destino. Sua mãe achava que a madeira estaria segura, deste que ficasse com ela, até que ela foi para a guerra, e a deu para mim. — Sua avó exalava mau humor. — Foi besteira de sua mãe ir para guerra, embora suponho que sempre soube que era seu destino, ela esperava reencontrar seu pai.
— Ela pensou... pensou que ele estaria no Afeganistão?
A avó estendeu suas mãos, como se isso fosse além de sua compreensão.
— Ela foi. Morreu bravamente. Pensei que o dom da família iria protegê-la. Não tenho nenhuma dúvida que foi assim que ela salvou aqueles soldados. Ela nunca quis o dom que nossa família carrega. Não ajudou meu pai nem o pai dela. Não me ajudou. E agora você se tornou um homem. Você deve seguir o caminho.
— Mas... Que caminho? O nosso dom é... arco e flecha?
— Você e seu arco e flecha, menino! Tolo. Logo você vai descobrir. Hoje à noite, depois do funeral, você deve ir para o sul. Sua mãe disse que se ela não voltasse do combate, Lupa iria enviar mensageiros. Eles o acompanharão para um lugar onde os filhos dos deuses podem ser treinados para o seu destino.
Frank se sentiu como se estivesse sendo espetado com inúmeras flechas, seu coração dividido em cacos de porcelana. Ele não entendeu a maior parte do que a avó disse, mas uma coisa era clara: ela estava chutando-o para fora.
— Você está me mandando embora? — perguntou. — Sua família restante?
A boca de sua avó tremia. Seus olhos pareciam úmidos. Frank ficou chocado ao perceber que ela estava quase chorando. Ela havia perdido o marido há anos, então sua filha e agora ela estava prestes a mandar embora seu único neto. Mas ela se levantou do sofá e ficou ereta, sua postura rígida e correta como sempre.
— Quando você chegar ao acampamento — ela instruiu — você deverá falar com o pretor em privado. Diga-lhe que o seu bisavô era Shen Lun. Já tem muitos anos desde o incidente de São Francisco. Esperamos que eles não o matem pelo que ele fez, mas você pode querer pedir perdão por suas ações.
— Isso está ficando cada vez melhor — Frank resmungou.
— A deusa disse que você faria o círculo da família ficar completo — a voz da avó não tinha nenhum traço de simpatia. — Ela escolheu o seu caminho anos atrás e não vai ser fácil. Mas agora é hora do funeral. Temos obrigações. Venha. O carro está esperando.
A cerimônia foi um borrão: faces solenes, o tamborilar da chuva no toldo do enterro, o estalido dos fuzis da guarda de honra, o afundamento do caixão dentro da terra.
Naquela noite, os lobos chegaram. Eles uivaram na varanda da frente. Frank saiu para encontrá-los. Ele levou o seu pacote de viagem, sua roupas mais quentes, seu arco e sua aljava. A medalha de sacrifício da sua mãe estava enrolado em sua mochila. O graveto carbonizado estava embrulhado cuidadosamente em três camadas de pano no bolso do casaco, junto ao seu coração.
Sua jornada para o sul começou – para a Casa do Lobo em Sonoma e, eventualmente, para o Acampamento Júpiter, onde falou com Reyna privadamente como sua avó lhe havia instruído. Ele implorou perdão para o bisavô, embora não soubesse nada sobre aquilo. Reyna o deixou se juntar à legião. Nunca lhe disse o que seu bisavô tinha feito, mas ela obviamente sabia. Frank podia dizer que era ruim.
— Eu julgo as pessoas pelos seus próprios méritos — Reyna tinha dito. — Mas não mencione o nome de Shen Lun para qualquer outra pessoa. Deve permanecer como nosso segredo ou você vai ser mal tratado.
Infelizmente, Frank não teve muitos méritos. Seu primeiro mês no acampamento foi gasto derrubando linhas de armas, quebrando carros e derrubando Coortes inteiras enquanto marchavam. Seu trabalho favorito era cuidar de Hannibal, o elefante, mas ele conseguiu cometer erros nisso também – dando à Hannibal uma indigestão, alimentando-o com amendoim. Quem sabia que os elefantes poderiam ser intolerantes a amendoim?
Frank imaginou se Reyna estava lamentando a sua decisão de deixá-lo entrar. Todos os dias, ele acordava se perguntando se o graveto de alguma forma pegaria fogo e queimaria, e ele morreria.
Tudo isto correu pela cabeça de Frank enquanto ele caminhava com Hazel e Percy para os jogos de guerra. Ele pensou sobre o graveto acondicionado dentro de seu bolso do casaco, e o que significava o fato de Juno ter aparecido no acampamento. Ele estava prestes a morrer? Achava que não. Ele com certeza não trouxe qualquer honra para sua família ainda.
Talvez Apolo o reclamasse hoje e explicaria seus poderes e dons.
Uma vez que eles saíram do acampamento, a Quinta Coorte formou-se em duas linhas atrás de seus centuriões, Dakota e Gwen. Eles marcharam para o norte, contornando a orla da cidade, e seguiram para o Campo de Marte – a maior e mais plana parte do vale. A grama era cortada bem curta por todos os unicórnios, touros e faunos sem-teto que pastavam aqui. A terra estava repleta de crateras de explosão e marcada com trincheiras de jogos anteriores. No extremo norte do campo estava o seu alvo. Os engenheiros construíram uma fortaleza de pedra com uma ponte levadiça de ferro, torres de guarda, balistas escorpião, canhões de água e sem dúvida muitas outras surpresas desagradáveis para os defensores usarem.
— Eles fizeram um bom trabalho hoje — Hazel observou. — Isso é ruim para nós.
— Espere — disse Percy. — Você está me dizendo que fortaleza foi construída hoje?
— Legionários são treinados para construir — Hazel respondeu, sorrindo.
— Se quiséssemos, poderíamos quebrar todo o campo e reconstruí-lo em algum outro lugar. Talvez tome três ou quatro dias, mas nós poderíamos fazê-lo.
— Então vocês atacam uma fortaleza diferente a cada noite?
— Nem todas as noites — disse Frank. — Temos exercícios de treinamento diferentes. Às vezes, a bola da morte, que é como paint-ball, exceto que com... você sabe, bolas de veneno, ácido e fogo. Às vezes fazemos competições de bigas e de gladiadores, às vezes jogos de guerra.
Hazel apontou para o forte.
— Em algum lugar lá dentro, a Primeira e Segunda Coorte estão mantendo seus estandartes. Nosso trabalho é entrar e capturá-los sem sermos abatidos. Se fizermos isso, ganhamos.
Os olhos de Percy se iluminaram.
— Como pique-bandeira. Eu acho que  gosto de pique-bandeira.
Frank riu.
— Sim, bem... é mais difícil do que parece. Temos que passar os escorpiões e os canhões de água nas paredes, lutar pelo interior da fortaleza, encontrar os estandartes, derrotar os guardas e ao mesmo tempo proteger os nossos próprios estandartes e as tropas de captura. E a nossa Coorte está em concorrência com os outros dois grupos de ataque. Nós trabalhamos juntos, mas não realmente. A Coorte que captura as bandeiras recebe toda a glória.
Percy tropeçou, tentando manter o tempo com o ritmo de marcha esquerda-direita. Frank simpatizou. Ele tinha passado suas primeiras duas semanas caindo.
— Então por que estamos praticando isso, afinal? — Percy perguntou. — Vocês passam muito tempo assaltando cidades fortificadas?
— Trabalho em equipe — disse Hazel. — Raciocínio rápido. Táticas. Habilidades de batalha. Você ficaria surpreso com o que você pode aprender nos jogos de guerra.
— Como quem vai apunhalá-lo pelas costas — Frank comentou.
— É uma das coisas principais — Hazel concordou.
Eles marcharam para o centro do Campo de Marte e formaram fileiras. A Terceira e Quarta Coorte montadas na medida do possível a partir da Quinta. Os centuriões do lado atacante se reuniram para uma conferência. No céu acima deles, Reyna circulou em seu pégaso, Scipio, pronta para arbitrar.
Meia dúzia de águias gigantes voavam em formação atrás dela preparadas para o serviço de ambulância de transporte aéreo, se necessário. A única pessoa que não participava do jogo era Nico di Angelo, o “Embaixador de Plutão”, que havia subido para a torre de observação a cerca de cem metros do forte e estaria assistindo com binóculos.
Frank apoiou o pilo contra o seu escudo e checou a armadura de Percy. Cada tira estava correta. Cada peça de armadura estava adequadamente ajustada.
— Você fez certo — falou com espanto. — Percy, você deve ter participado de jogos de guerra antes.
 — Eu não sei. Talvez.
A única coisa que não estava normal era a brilhante espada de bronze de Percy ao invés de Ouro Imperial, e não era um gladio. A lâmina estava em forma de folha e a escrita no punho era grega.
Olhando para ela Frank ficou desconfortável. Percy franziu a testa.
— Nós podemos usar armas de verdade, certo?
— Sim — concordou Frank. — Com certeza. Eu apenas nunca vi uma espada como essa.
— E se eu machucar alguém?
— Nós curamos o alguém — Frank disse. — Ou tentamos. Os médicos da legião são muito bons com ambrósia e néctar, e unicórnios de tração.
— Ninguém morre — disse Hazel. — Bem, não, geralmente. E se morrerem...
Frank imitou a voz de Vitellius:
— Eles são covardes! Na minha época, nós morríamos o tempo todo, e gostávamos disso!
Hazel riu.
— Basta ficar com a gente, Percy. As chances são de que teremos os piores deveres e seremos eliminados cedo. Eles nos lançam nas paredes primeiro para suavizarmos as defesas. Em seguida, as Coortes Terceira e Quarta marcharão para obter as honras, se eles puderem quebrar o forte.
Cornetas soaram. Dakota e Gwen voltaram da conferência dos oficiais, parecendo tristes.
— Tudo bem, aqui está o plano! — Dakota tomou um gole rápido de Kool-Aid de seu frasco de viagem — eles irão nos jogar nas paredes primeiro para suavizar as defesas.
Toda a Coorte gemeu.
— Eu sei, eu sei — Gwen falou. — Mas talvez desta vez nós tenhamos alguma sorte!
Gwen quis ser otimista. Todo mundo gostava dela porque ela tinha o cuidado de tentar manter o ânimo de seu povo. Ela poderia até mesmo controlar Dakota durante seu bug hiperativo de suco de caixinha. Ainda assim, os campistas resmungaram e se queixaram. Ninguém acreditava em sorte na Quinta Coorte.
— Dakota fica com a primeira linha — disse Gwen. — Bloqueie com escudos e avancem na formação de tartaruga para os portões principais. Tentem ficar em um só conjunto. Chame o seu fogo. Segunda linha... assuma o comando do elefante e as escadas de escalada. Tente um ataque de acompanhamento na parede ocidental — Gwen passou os olhos Frank, sem muito entusiasmo. — Talvez possamos espalhar os defensores deixando a linha deles muito fina. Frank, Hazel, Percy... bem, basta fazer o de sempre. Mostrem a Percy as cordas. Tentem mantê-lo vivo — ela voltou-se para toda a Coorte. — Se alguém passar pela primeira parede, vou ter certeza de obter a Coroa Mural. Vitória para a Quinta Coorte!
A Coorte aplaudiu empenhadamente e rompeu-se.
Percy franziu a testa.
— Fazer o de sempre?
— Sim — suspirou Hazel. — Grande voto de confiança.
— O que é a Coroa Mural?
— Medalha militar — disse Frank. Ele tinha sido forçado a memorizar todos os prêmios possíveis. — Grande honra para o primeiro soldado a entrar em um forte inimigo. Você vai notar que ninguém na Quinta Coorte está vestindo uma. Geralmente nós nem sequer entramos no forte porque estamos queimando ou afogando ou... — Ele vacilou, e olhou para Percy. — Canhões de água.
— O quê? — Percy perguntou.
— Os canhões nas paredes — Frank disse — eles tiraram água do aqueduto. Há um sistema de bomba... eu não sei como isso funciona, mas eles estão sob muita pressão. Se você pudesse controlá-los, como você controlou o rio...
— Frank! — Hazel comemorou. — Isso é brilhante!
Percy não parecia tão certo.
— Eu não sei como fiz isso no rio. Eu não tenho certeza de que posso controlar os canhões desta distância.
— Vamos chegar mais perto — Frank apontou para a parede oriental da fortaleza, onde a Quinta Coorte não estaria atacando. — É aí que a defesa irá ser mais fraca. Eles nunca vão levar três crianças a sério. Acho que podemos deslocar-nos muito perto antes de nos verem.
— Deslocar-se como? — Percy perguntou.
Frank virou-se para Hazel.
— Você pode fazer aquela coisa de novo?
Ela socou-o no peito.
— Você disse que não iria dizer nada!
Frank imediatamente sentiu-se péssimo. Ele tinha ficado tão excitado com a ideia...
Hazel murmurou baixinho.
— Não se preocupe. Está tudo bem. Percy, ele está falando sobre as trincheiras. O Campo de Marte está repleto de túneis ao longo de tantos anos. Alguns estão desmoronados, ou enterrados, mas muitos deles ainda são transitáveis. Eu sou muito boa em encontrá-los e usá-los. Eu posso até mesmo desmoroná-los, se precisar.
— Como você fez com as górgonas — Percy disse. — Para atrasá-las.
Frank assentiu com aprovação.
— Eu disse que Plutão era legal. Ele é o deus de tudo debaixo da terra. Hazel pode encontrar cavernas, túneis, alçapões...
— E lá se foi o nosso segredo — ela resmungou.
Frank sentiu-se corar.
— Sim, me desculpe. Mas, se pudermos chegar perto...
— E se eu puder tirar os canhões de água da jogada... — Percy balançou a cabeça, como se ela fosse aquecer com a ideia. — O que faremos então?
Frank checou sua aljava. Ela sempre estocava flechas especiais. Ele nunca chegou a utilizá-las antes, mas talvez esta noite fosse a noite. Talvez ele pudesse, finalmente, fazer algo bom o suficiente para chamar a atenção de Apolo.
— O resto depende de mim — disse ele. — Vamos.

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