quinta-feira, 17 de outubro de 2013

XLIII - Piper






PIPER PRECISAVA DE UM MILAGRE, não uma história para dormir. Mas logo em seguida, ficando em estado de choque com a água preta derramada em torno de suas pernas, ela lembrou da lenda que Aqueloo tinha mencionado – a história da inundação.
Não a história de Noé, mas a versão Cherokee que seu pai costumava contar-lhe, com os fantasmas da dança e cães-esqueleto.
Quando ela era pequena, se aconchegou ao lado de seu pai em sua grande cadeira. Ela olhou para fora, nas janelas no litoral de Malibu e seu pai lhe disse a história que ele ouvira do vovô Tom na volta da reserva em Oklahoma.
— Este homem tinha um cachorro — seu pai sempre dizia.
— Você não pode começar uma história assim! — Piper protestou. — Você tem que dizer era uma vez.
Seu pai riu.
— Mas esta é uma história Cherokee. Elas são bastante simples. Então, de qualquer maneira, este homem tinha um cachorro. A cada dia, o homem levava seu cachorro para a beira do lago para pegar água e o cão latia furiosamente para o lago, como se estivesse bravo com ele.
— Ele estava?
— Seja paciente, querida. Finalmente, o homem se irritou com seu cão por latir muito: “Cão mau! Pare de latir para a água. É só água!” Para sua surpresa, o cão olhou bem para ele e começou a falar.
— Nosso cão podia dizer “Obrigado” — Piper ofereceu. — E ele podia latir fora.
— Mais ou menos — seu pai concordou. — Mas este cão falava frases inteiras. O cão disse: “Um dia, em breve, as tempestades virão. As águas vão subir e todo mundo vai se afogar. Você pode salvar a si mesmo e sua família através da construção de uma jangada, mas primeiro você terá de me sacrificar. Você deve me jogar na água.”
— Isso é terrível! — Piper disse. — Eu nunca iria afogar meu cão!
— O homem provavelmente disse a mesma coisa. Ele pensou que o cão estava mentindo... quero dizer, uma vez que tinha saído do choque ao saber que seu cachorro pudesse falar. Quando ele protestou, o cão disse: “Se você não acredita em mim, olhe para a minha nuca. Eu já estou morto.
— Isso é triste! — Piper protestou. — Por que você está me contando isso?
— Porque você me pediu — o pai lembrou.
E, de fato, algo sobre a história havia fascinado Piper. Ela tinha ouvido dezenas de vezes, mas continuava pensando sobre isso.
— De qualquer forma, o homem pegou o cachorro pela nuca e viu que a sua pele e pelos já estavam caindo. Debaixo não havia nada além de ossos. Era um cão-esqueleto.
— Grosseiro.
— Eu concordo. Então, com lágrimas nos olhos, o homem disse adeus a seu cachorro-esqueleto irritante e jogou-o na água, onde rapidamente afundou. O homem construiu uma jangada e quando veio o dilúvio, ele e sua família sobreviveram.
— Sem o cachorro — ela acrescentou.
— Sim. Sem o cão. Quando as chuvas diminuíram e a balsa parou em terra firme, o homem e sua família eram os únicos vivos. O homem ouviu sons vindos do outro lado de uma colina, como milhares de pessoas rindo e dançando, mas quando ele correu para o alto, infelizmente, abaixo dele não havia nada exceto ossos espalhados no chão, milhares de esqueletos de todas as pessoas que morreram na inundação. Ele percebeu que os fantasmas dos mortos estavam dançando. Esse era o som que ouvia.
Piper esperou.
— E?
— E nada. O fim.
— Você não pode terminar assim! Por que os fantasmas dançavam?
— Eu não sei — disse o pai. — Seu avô nunca sentiu a necessidade de explicar. Talvez os fantasmas estivessem felizes que uma família havia sobrevivido. Talvez estivessem desfrutando da vida após a morte. Eles são fantasmas. Quem pode dizer?
Piper estava muito insatisfeita com isso. Ela tinha tantas perguntas sem resposta. Será que a família encontrou outro cão? Obviamente, nem todos os cães se afogaram, porque ela mesma tinha um cachorro. Ela não conseguia se livrar da história. Nunca olhou para os cães da mesma forma, se perguntando se um deles poderia ser um cão-esqueleto. E não entendia por que a família teve que sacrificar o seu cão para sobreviver. Sacrificar-se para salvar sua família parecia uma coisa tipicamente nobre – tipicamente de um cachorro.
Agora, no nymphaeum em Roma, com a água escura em sua cintura, Piper se perguntou por que o deus do rio Aqueloo havia mencionado essa história. Ela desejou ter uma jangada, mas temia que sua situação fosse como a do cão-esqueleto. Ela já estava morta.

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