quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Capitulo XXXV - Frank







BASTOU UMA OLHADELA PELA JANELA e Frank soube que estava em apuros.
Na beira do gramado, os lestrigões estavam empilhando balas de canhão de bronze. A pele deles brilhava em vermelho. Os cabelos desgrenhados, as tatuagens e as garras não pareciam mais bonitas na luz da manhã.
Alguns carregavam clavas ou lanças. Ogros confusos carregavam pranchas de surf, como se tivessem aparecido na festa errada. Todos eles estavam em clima de festa – dando toquinhos com as mãos uns com os outros, amarrando aventais de plástico em volta de seus pescoços, quebrando as facas e os garfos. Um ogro havia colocado fogo em uma churrasqueira portátil e estava dançando com um avental que dizia BEIJE O COZINHEIRO.
A cena seria até engraçada, se Frank não soubesse que ele era o prato principal.
— Eu mandei seus amigos para o sótão — disse Vovó. — Você pode se juntar a eles quando terminarmos.
— O sótão? — Frank se virou. — Você me disse que eu nunca poderia entrar lá.
— Isso é porque nós mantemos armas no sótão, garoto bobo. Você acha que essa é a primeira vez que monstros atacam nossa família?
— Armas — resmungou Frank. — Certo. Eu nunca manipulei armas antes.
As narinas de Vovó inflaram.
— Isso foi sarcasmo, Fai Zhang?
— Sim, vovó.
— Ótimo. Então ainda pode haver esperança para você. Agora sente-se. Você tem que comer.
Ela acenou com a mão para a escrivaninha, onde alguém havia colocado um copo de suco de laranja e um prato de ovos cozidos e bacon torrados – o café da manhã preferido de Frank.
Apesar de seus problemas, Frank subitamente se sentiu faminto. Ele olhou para Vovó atônito.
— Foi você que...
— Se eu fiz seu café da manhã? Pelo macaco de Buda, é claro que não! E também não foram os empregados da casa. Aqui é muito perigoso para eles. Não, a sua namorada Hazel fez isso pra você. E lhe trouxe um cobertor e um travesseiro noite passada. E pegou algumas roupas limpas para você em seu quarto. A propósito, você deveria tomar banho. Está cheirando à crina de cavalo queimada.
Frank abriu e fechou a boca como um peixe. Não conseguia fazer os sons saírem. Hazel havia feito tudo aquilo por ele? Frank tinha certeza de que destruíra qualquer chance com ela na noite passada, quando chamou Cinzento.
— Ela não é... hum... ela não é...
— Não é sua namorada? — Vovó perguntou. — Bem, ela deveria ser, seu pateta! Não a deixe escapar. Você precisa de mulheres fortes em sua vida, se ainda não notou. Agora, ao trabalho.
Frank comia enquanto Vovó lhe dava um tipo de sessão de instrução militar. Na luz do dia, sua pele era tão translúcida que suas veias pareciam brilhar. Sua respiração soava como um frágil saco de papel inflando e desinflando, mas ela falava com firmeza e clareza. Explicou que os ogros estavam vigiando a casa fazia três dias, apenas esperando Frank aparecer.
— Eles querem cozinhar você e comê-lo — disse ela, amargamente. — O que é ridículo. Você tem um gosto horrível.
— Obrigado, Vovó.
Ela balançou a cabeça.
— Eu admito, fiquei um pouco contente quando me disseram que você estava voltando. E estou encantada em vê-lo uma última vez, mesmo que as suas roupas estejam sujas e você precise de um corte de cabelo. É assim que você representa sua família?
— Eu estive um pouco ocupado, Vovó.
— Não há desculpa para o desleixo. De qualquer forma, seus amigos dormiram e comeram. Estão fazendo um balanço das armas estocadas no sótão. Eu disse que você se juntaria a eles logo, mas há ogros demais para defender por muito tempo. Devemos bolar um plano de fuga. Olhe na escrivaninha.
Frank abriu a gaveta e puxou para fora um envelope selado.
— Sabe o aeródromo no fim do parque? — perguntou Vovó. — Você consegue encontrá-lo de novo?
Frank assentiu, mudo. Era cerca de cinco quilômetros ao norte, pela estrada principal que atravessava o cânion. Vovó o havia levado lá algumas vezes quando ela alugava aviões para trazer carregamentos especiais da China.
— Há um piloto à disposição para sair a qualquer momento —  Vovó continuou — ele é um velho amigo da família. Tenho uma carta para ele nesse envelope, pedindo-lhe para levá-lo ao norte.
— Mas...
— Não argumente garoto — murmurou ela. — Marte veio me visitar esses dias, pra me fazer companhia. Ele me falou da sua jornada. Ache a Morte no Alasca e liberte-a. Faça o que deve fazer.
— Mas se eu fizer isso, você irá morrer. E eu nunca mais vou te ver de novo.
— É verdade — Vovó concordou. — Mas eu irei morrer de qualquer jeito mesmo. Estou velha. E acho que deixei isso bem claro. Agora, o seu pretor lhe deu as cartas de recomendação?
— Uh, sim, mas...
— Ótimo. Mostre isso para o piloto também. Ele é um veterano da legião. Se tiver qualquer dúvida ou não tiver muita sorte, essas credenciais farão com que as obrigações de honra dele façam-no ajudar você da maneira que for possível. Tudo o que tem que fazer é chegar ao aeródromo.
A casa retumbou. Lá fora, uma bola de fogo explodiu no ar e iluminou todo o cômodo.
— Os ogros estão ficando impacientes — a avó observou. — Temos de nos apressar. Agora, sobre os seus poderes, espero que você os tenha descoberto.
— Hã...
Vovó murmurou algumas maldições em um mandarim muito rápido.
— Deuses de seus antepassados, garoto! Você não aprendeu nada?
— Sim!
Ele gaguejou os detalhes de sua discussão com Marte na noite anterior, mas sentia como se a sua língua estivesse presa perto de Vovó.
— O dom de Poriclimeno... acho... acho que ele era o filho de Poseidon, quero dizer, Netuno, quero dizer... — Frank abriu as mãos — o deus do mar.
Vovó concordou a contragosto.
— Ele era neto de Poseidon, mas já está bom. Como o seu cérebro brilhante chegou a esse fato?
— Um vidente em Portland... ele disse alguma coisa sobre meu bisavô, Shen Lun. O vidente disse que ele era culpado pelo terremoto de 1906, que destruiu São Francisco e o lugar onde anteriormente era o Acampamento Júpiter.
— Continue.
— No acampamento, disseram que um descendente de Netuno havia causado o desastre. Netuno é o deus dos terremotos. Mas... mas eu não acho que meu bisavô tenha feito isso, na verdade. Causar terremotos não fazia parte de seus dons.
— Não mesmo — concordou Vovó. — Mas sim, ele era culpado. Ele era um descendente anormal de Netuno. Era anormal porque seu dom de verdade era muito mais estranho do que causar terremotos. E também era anormal porque ele era chinês. Um garoto chinês nunca havia sido reivindicado por sangue romano antes. Uma verdade feia – mas não tem como negar isso. Ele foi falsamente acusado, forçado a deixar o acampamento em vergonha.
— Então... se ele não fez nada de errado, por que você me disse para pedir perdão por ele?
As bochechas de Vovó ficaram vermelhas.
— Porque se desculpar por alguma coisa que você não fez é melhor do que morrer por isso! Eu não tinha certeza se o acampamento iria te prender como culpado. Não sabia se o preconceito dos romanos havia diminuído.
Frank engoliu seu café da manhã. Ele havia sido provocado na escola e nas ruas algumas vezes, mas não muitas, e nunca havia acontecido isso no Acampamento Júpiter. Ninguém no acampamento, nem uma única vez, havia rido dele por ele ser asiático. Ninguém ligava pra isso. Eles só zoavam porque ele era desajeitado e lento. Não conseguia imaginar como havia sido para seu bisavô, acusado de destruir todo o acampamento e ser expulso da Legião por algo que não fizera.
— E o nosso dom real? — perguntou Vovó. — Você pelo menos descobriu o que é?
As velhas histórias de sua mãe rodaram pela mente de Frank. Lutando como um enxame de abelhas. Ele era o maior dragão de todos. Lembrou que sua mãe aparecia perto dele no jardim, como se tivesse voado de dentro do sótão. Lembrou-se dela saindo da floresta, dizendo que havia dado direções à Mamãe Urso.
— Você pode ser qualquer coisa — disse Frank. — Isso é o que ela sempre me dizia.
Vovó bufou.
— Finalmente uma luz fraca acendeu na sua cabeça. Sim, Fai Zhang. Sua mãe não estava simplesmente promovendo a sua autoestima. Ela estava dizendo pra você a verdade no sentido literal.
— Mas... — Outra explosão abalou a casa. O gesso do teto caiu como neve. Frank estava tão confuso que mal notara. — Qualquer coisa?
— Que tenha sentido — disse Vovó. — Seres vivos. Ajuda se você conhecer bem a criatura. Também ajuda se você estiver em uma situação de vida ou morte, como um combate. Porque parece tão surpreso, Fai? Você sempre disse que não estava confortável com seu corpo. Todos nós nos sentimos desse jeito – todos que temos sangue de Pilos. Este dom foi dado apenas uma vez para uma família mortal. Somos únicos entre os semideuses. Poseidon deve ter se sentido especialmente generoso quando abençoou nossos ancestrais – ou especialmente rancoroso. O dom tem se mostrado uma maldição. Ele não salvou sua mãe...
Lá fora, uma torcida vinha dos ogros. Alguém gritava:
— Zhang! Zhang!
— Você tem que ir, garoto bobo — disse Vovó. — Nosso tempo acabou.
— Mas... eu não sei como usar meu poder. Eu nunca... eu não consigo...
— Você consegue — disse Vovó. — Ou não irá sobreviver para realizar seu destino. Não gostei dessa Profecia dos Sete que Marte me falou. Sete é um número de azar em chinês – um número fantasma. Mas não há nada que possamos fazer sobre isso. Agora, vá! Amanhã à noite é a Festa da Fortuna. Você não tem tempo a perder. Não se preocupe comigo. Eu vou morrer no meu próprio tempo, da minha maneira. Não tenho intenção de ser devorada por aqueles ogros ridículos. Vá!
Frank se virou para a porta. Sentia como se seu coração estivesse sendo espremido por um espremedor de frutas, mas se curvou formalmente.
— Obrigado, Vovó — disse ele. — Eu vou fazer você se sentir orgulhosa.
Ela murmurou algo em voz baixa. Frank chegou a pensar que ela havia dito: Você precisa. Ele olhou estupefato, mas a expressão dela azedou imediatamente.
— Pare de ficar surpreso, menino! Vá tomar banho e se vestir! Arrume seu cabelo! Será minha última imagem de você e você quer ficar com o cabelo desarrumado?
Ele passou as mãos nos cabelos para abaixá-los e se inclinou novamente. Sua última imagem de Vovó era dela olhando pela janela, como se pensando na bronca terrível que daria nos ogros quando eles invadissem sua casa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário