quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Capitulo XXIX - Hazel






ANTES MESMO DE ENTRAR NO BARCO, Hazel se sentiu enjoada.
Ela não parava de pensar em Fineu com aquele vapor saindo de seus olhos e suas mãos se desintegrando em pó. Percy tinha lhe assegurado de que ela não era como Fineu. Mas ela era. Havia feito algo ainda pior do que amaldiçoar as harpias.
Você começou tudo isso! Fineu havia-lhe dito. Se não fosse por você, Alcioneu não estaria vivo!
Conforme o barco acelerava para descer o rio Columbia, Hazel tentava esquecer. Ajudou Ella a fazer um ninho com os velhos livros e revistas que haviam pego da caixa de reciclagem na biblioteca. Eles não tinham realmente planejado levar a harpia com eles, foi Ella quem decidiu.
— Friends — ela murmurou. — “Dez temporadas. 1994 à 2004.” Amigos que derreteram Fineu e deram charque para Ella. Ella irá com seus amigos.
Agora ela estava empoleirada confortavelmente na proa, mordiscando pedaços de carne seca e recitando linhas aleatórias de Charles Dickens e 50 Truques para ensinar ao seu cão.
Percy ajoelhou-se sobre a proa, orientando-os em direção ao oceano com seus esquisitos poderes da mente sobre a água. Hazel se sentou ao lado de Frank no banco central, com seus ombros se tocando, o que a fez se sentir confusa como uma harpia.
Ela se lembrou como Frank a defendeu em Portland, gritando: Ela é uma boa pessoa!, como se ele estivesse pronto para bater em qualquer um que negasse isso. Lembrou do jeito como ele havia parecido na encosta em Mendocino, sozinho em uma clareira de grama envenenada com sua lança na mão, incêndios queimando tudo ao seu redor e as cinzas de três basiliscos a seus pés.
Há uma semana, se alguém tivesse sugerido que Frank era uma criança de Marte, Hazel teria rido. Frank era muito doce e gentil para isso. Sempre se sentiu como a protetora dele por causa de sua falta de jeito e seu talento para se meter em encrenca.
Desde que deixaram o acampamento, ela o via de uma forma diferente. Ele tinha mais coragem do que ela havia percebido. Era o único que a protegia. Teve que admitir que a mudança foi bem legal.
O rio estendeu-se para o oceano. O Pax virou-se para o norte.
Enquanto navegavam, Frank manteve seu ânimo para cima fazendo piadas tolas – Por que o Minotauro atravessou a rua? Quantos faunos são precisos para trocar uma lâmpada? Ele indicou edifícios ao longo da costa que o lembrava de lugares em Vancouver.
O céu começou a escurecer, e o mar ficou da mesma cor enferrujada das asas de Ella. 21 de junho estava se aproximando do fim. A Festa da Fortuna, que aconteceria à noite, estava a exatamente 72 horas a partir de agora.
Finalmente Frank tirou um pouco de comida de sua bolsa – refrigerantes e muffins que havia pegado da mesa de Fineu. Ele passou para todos.
— Está tudo bem, Hazel — ele disse calmamente. — Minha mãe costumava dizer que você não deve tentar cuidar de um problema sozinho. Mas se não quiser falar sobre isso, tudo bem.
Hazel respirou instavelmente. Tinha medo de falar, não só porque estava envergonhada. Não queria desmaiar e voltar a deslizar pelo seu passado.
— Você estava certo — disse. — Quando supôs que vim do Mundo Inferior. Eu sou... eu sou uma fugitiva. Não deveria estar viva.
Ela se sentia como se uma represa tivesse se rompido. Inundando a história. Explicou como sua mãe havia convocado Plutão e se apaixonado pelo deus. Explicou o desejo de sua mãe por todas as riquezas da terra, e como isso havia se tornado a maldição de Hazel. Descreveu sua vida em Nova Orleans – tudo, exceto seu namorado Sammy. Olhando para Frank, não teve coragem de falar sobre isso.
Ela descreveu a Voz, e como Gaia tinha assumido lentamente a mente de sua mãe. Falou como elas haviam se mudado para o Alasca, como Hazel havia ajudado a levantar o gigante Alcioneu e como tinha morrido, afundando a ilha na Baía da Ressurreição.
Sabia que Percy e Ella estavam ouvindo, mas ela falou principalmente para Frank. Quando tinha terminado, estava com medo de olhar para ele. Esperou que ele se afastasse, talvez dizendo que ela era um monstro depois de tudo isso.
Em vez disso, ele pegou em sua mão.
— Você se sacrificou para impedir o gigante de acordar. Eu nunca seria tão corajoso assim.
Hazel sentiu sua pulsação no pescoço.
— Não foi coragem. Eu deixei minha mãe morrer. Cooperei com Gaia por um tempo muito longo. Quase a deixei ganhar.
— Hazel — disse Percy. — Você se levantou contra uma deusa sozinha. Você fez o certo... — sua voz sumiu, como se tivesse tido um pensamento desagradável. — O que aconteceu no Mundo Inferior... Quero dizer, depois que você morreu? Você deveria ter ido para o Elísio. Mas se Nico trouxe você de volta...
— Eu não fui para o Elísio — sua boca estava seca como areia. — Por favor, não pergunte...
Mas era tarde demais. Ela se lembrou de sua decida nas trevas, sua chegada às margens do Rio Estige, e sua consciência começou a escorregar.
— Hazel? — Frank perguntou.
— “Slip Sliding Away” — Ella murmurou. — Número cinco EUA Paul Simon. Frank, vá com ela. Paul Simon disse: Frank, vá com ela.
Hazel não fazia ideia do que Ella estava falando, mas sua visão escurecia enquanto se agarrava na mão de Frank.

Ela se viu de volta ao Mundo Inferior, e dessa vez Frank estava ao seu lado. Eles estavam no barco de Caronte, atravessando o Estige. Coisas rodavam nas águas escuras – um balão murcho de aniversário, a chupeta de uma criança, os noivinhos de plástico de um bolo de casamento – tudo remanescente de curtas vidas humanas.
— O-onde nós estamos? — Frank estava ao seu lado, brilhando com uma fantasmagórica luz roxa como se tivesse se tornado um lar.
— É o meu passado — Hazel se sentia estranhamente calma. — É apenas um eco. Não se preocupe.
O barqueiro se virou e sorriu. Em um momento ele era um bonito homem africano em um terno de seda cara. No outro, era um esqueleto em um manto negro.
— Claro que você não deve se preocupar — ele disse com um sotaque britânico. Ele abordou Hazel, como se não pudesse ver Frank ao seu lado. — Eu disse que iria atravessá-la, não disse? Tudo bem se você não tem nenhuma moeda... Não seria apropriado, deixar uma filha de Plutão no lado errado do rio.
O barco deslizou para uma praia escura. Hazel levou Frank para os portões negros do Érebo. Os espíritos se dividiram para eles, sentindo que ela era uma filha de Plutão. Cérbero, o gigante cão de três cabeças, rosnou na escuridão, mas os deixou passar. Dentro dos portões, eles andaram através de um largo pavilhão e pararam na frente de uma arquibancada de jurados. Três figuras de túnica preta com máscaras de ouro olharam para Hazel.
Frank choramingou.
— Quem...?
— Eles vão decidir meu destino — ela disse. — Veja.
Assim como antes, os juízes não lhe perguntaram nada. Simplesmente olharam em sua mente, puxando os pensamentos de sua cabeça e examinando-os como uma coleção de fotos antigas.
— Frustrou Gaia — o primeiro juiz disse. — Impediu Alcioneu de acordar.
— Mas ela levantou o gigante primeiramente. — O segundo juiz tentou argumentar. — Culpa da fraqueza, da covardia.
— Ela é jovem — disse o terceiro juiz. — A vida da mãe dela está pendurada na balança.
— Minha mãe — Hazel tomou coragem para falar. — Onde ela está? Qual o é o seu destino?
Os juízes consideraram-na, suas máscaras de ouro congeladas em um sorriso assustador.
— Sua mãe...
A imagem de Marie Levesque brilhou acima dos juízes. Ela estava congelada no tempo, abraçando Hazel enquanto a caverna desmoronava, com seus olhos fechados.
— Uma questão interessante — o segundo juiz disse. — A divisão da culpa.
— Sim — disse o primeiro juiz. — A criança morreu por uma causa nobre. Impediu muitas mortes por atrasar a ascensão do gigante. Teve coragem de ficar contra o poder de Gaia.
— Mas agiu tarde demais — o terceiro juiz disse com tristeza. — Ela é culpada por auxiliar um inimigo dos deuses.
— A mãe a influenciou — disse o primeiro juiz. — A criança pode ir para o Elísio. Punição eterna para Marie Levesque.
— Não! — Hazel gritou. — Não, por favor! Isso não é justo!
Os juízes inclinaram a cabeça em uníssono. Máscaras de ouro, Hazel pensou. Ouro sempre foi amaldiçoado para mim. Ela perguntou-se se o ouro estava envenenando o pensamento deles de alguma forma, de modo que eles nunca dessem um julgamento justo.
— Tenha cuidado, Hazel Levesque — o primeiro juiz advertiu. — Você consegue assumir a total responsabilidade? Pode colocar essa culpa na alma da sua mãe. O que seria razoável. Você foi destinada a grandes coisas. Sua mãe lhe desviou do caminho. Veja o que você poderia ter sido...
Outra imagem apareceu sobre os juízes. E Hazel se viu como uma menininha, sorrindo, com as mãos cobertas de tinta. A imagem envelheceu. Hazel viu-se crescer – o cabelo dela ficando mais longo, com os olhos tristes. Se viu em seu décimo terceiro aniversário, passeando através de campos em seu cavalo emprestado. Sammy ria enquanto corria atrás dela: Do que você está correndo? Eu não sou tão feio, sou? Ela se viu no Alasca, caminhando pela Third Street na neve e na escuridão em seu caminho de volta para casa.
Então a imagem envelheceu ainda mais. Hazel se viu com vinte anos. Ela se parecia muito com sua mãe, cabelos trançados em volta da cabeça, olhos dourados que piscavam com divertimento. Usava um vestido branco – um vestido de noiva? Estava sorrindo tão calorosamente, Hazel sabia instintivamente que devia estar olhando para alguém especial – alguém que ela amava.
A visão não a fez se sentir amarga. Ela nem mesmo queria saber com quem teria se casado. Em vez disso, pensou: Talvez minha mãe pudesse ter se parecido com isso se tivesse deixado sua raiva ir embora, se Gaia não tivesse a enrolado.
— Você perdeu a vida — disse o primeiro juiz simplesmente. — Circunstâncias especiais. Elísio para você. Punição para sua mãe.
— Não — Hazel interrompeu. — Não, não foi tudo culpa dela. Ela foi enganada. Ela me amava, e no final, tentou me proteger.
— Hazel — Frank cochichou — o que você está fazendo?
Ela apertou sua mão, incentivando-o a ficar em silêncio. Os juízes não lhe deram atenção. Finalmente, o segundo juiz suspirou.
— Sem resolução. Nada suficientemente bom. Nada suficientemente mau.
— A culpa deve ser dividida — o primeiro juiz concordou. — Ambas as almas serão mandadas para o Campo de Asfódelos. Sinto muito, Hazel Levesque. Você poderia ter sido uma heroína.
Ela passou pelo pavilhão, para os campos amarelos sem fim. Levou Frank através de uma multidão de espíritos para um bosque de choupos negros.
— Você desistiu do Elísio — Frank disse espantado. — Para que sua mãe não sofresse?
— Ela não merecia os Campos de Punição.
— Mas... o que acontece agora?
— Nada — Hazel disse. — Nada... por toda a eternidade.
Eles vagaram sem rumo. Espíritos ao seu redor faziam barulhos como morcegos – perdidos e confusos, eles não se lembravam de seu passado, nem mesmo seus próprios nomes.
Hazel se lembrava de tudo. Talvez porque fosse filha de Plutão, ela nunca se esqueceu de quem era, ou o porquê de estar ali.
— Lembrar da minha vida após a morte foi difícil — ela disse a Frank, que ainda flutuava ao lado dela como um lar roxo e brilhante. — Muitas vezes eu tentei ir até o palácio de meu pai... — ela apontou para um grande castelo negro à distância — mas nunca pude alcançá-lo. Não posso deixar o Campo de Asfódelos.
— Alguma vez viu a sua mãe novamente?
Hazel balançou a cabeça.
— Ela não me reconheceria, mesmo se eu pudesse encontrá-la. Esses espíritos... é como um sonho eterno para eles, um transe sem fim. Isso é o melhor que pude fazer por ela.
O tempo não significava nada, mas depois de uma eternidade, ela e Frank sentaram-se debaixo de um choupo negro, ouvindo os gritos dos Campos de Punição.
À distância, sob a luz do sol artificial do Elísio, a Ilha dos Bem-Aventurados brilhava como cintilantes esmeraldas em um lago azul. Velas brancas atravessavam a água e as almas dos grandes heróis se aqueciam nas praias em uma felicidade perpétua.
— Você não merecia o Asfódelos — Frank protestou. — Você deveria estar com os heróis.
— Isso é apenas um eco — disse Hazel. — Vamos acordar, Frank. Isso só parece eterno.
— Não é esse o ponto! — ele protestou. — Sua vida foi tirada de você. Você ia crescer e ser uma mulher linda. Você...
Seu rosto ficou em um tom mais escuro de roxo.
— Você iria se casar com alguém — ele disse calmamente. — Poderia ter tido uma boa vida. Você perdeu tudo isso.
Hazel engoliu um soluço. Não tinha sido tão difícil nos Asfódelos na primeira vez, quando estava sozinha. Ter Frank com ela a fez se sentir muito triste. Mas estava determinada a não ficar com raiva sobre o seu destino.
Hazel pensou em sua imagem quando adulta, sorrindo e apaixonada. Sabia que não seria necessária muita amargura para azedar sua expressão e fazer dela exatamente como a “Rainha Marie”. Eu mereço o melhor, sua mãe dizia. Hazel não podia permitir se sentir assim.
— Me desculpe, Frank — ela disse. — Eu acho que sua mãe estava errada. Compartilhar segredos não os torna mais fáceis de carregar.
— Comigo torna — Frank enfiou a mão no bolso do casaco. — Na verdade... já que temos a eternidade para conversar, tem algo que eu queria te dizer.
Ele trouxe para fora um objeto enrolado em um pano, do mesmo tamanho de um par de óculos. Quando desdobrou o pano, Hazel viu um pedaço de madeira meio queimado, brilhando com uma luz roxa.
Ela franziu o cenho.
— O que é... — então a verdade bateu, tão fria e áspera como uma rajada de vento de inverno. — Fineu disse que sua vida depende de um pedaço de madeira queimada...
— É verdade — disse Frank. — Esta é a minha vida, literalmente.
Ele contou como a deusa Juno tinha aparecido quando ele era um bebê, como sua avó tinha arrancado um pedaço de madeira da lareira.
— Vovó disse que eu tinha talentos, alguns talentos que recebemos do nosso ancestral, o Argonauta. Isso, e meu pai sendo Marte... — ele deu de ombros. — Tenho que ser muito forte. É por isso que minha vida pode queimar tão facilmente. Íris disse que eu iria morrer segurando isso, assistindo-o queimar.
Frank virou o pedaço de madeira em seus dedos. Mesmo em sua fantasmagórica forma roxa, ele parecia tão grande e robusto. Hazel imaginou que ele seria enorme quando fosse adulto – tão forte e saudável como um touro. Não podia acreditar que sua vida dependia de algo tão pequeno como um pedaço de madeira.
— Frank, como você pode carregar isso com você? — perguntou ela. — Você não tem medo que alguma coisa aconteça com isso?
— É por isso que estou lhe contando — ele estendeu a madeira. — Eu sei que é pedir demais, mas você poderia guardar isso para mim?
A cabeça de Hazel girava. Até agora, ela aceitou a presença de Frank em seu desmaio. O levou junto, revivendo entorpecida o seu passado, porque parecia justo lhe mostrar a verdade. Mas agora ela se perguntava se Frank estava realmente experimentando isso com ela, ou se estava apenas imaginando sua presença. Por que ele confiaria sua vida à ela?
— Frank — ela disse — você sabe quem eu sou. Sou filha de Plutão. Tudo em que toco dá errado. Por que você confiaria em mim?
— Você é a minha melhor amiga — ele colocou a madeira nas mãos dela. — Eu confio em você mais do que em ninguém.
Ela queria dizer que ele estava cometendo um erro. Queria devolver a madeira para ele. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, uma sombra caiu sobre eles.
— Nosso passeio termina aqui — Frank adivinhou.
Hazel tinha quase esquecido que estava revivendo seu passado.
Nico di Angelo estava sobre ela com o seu sobretudo preto, sua espada de aço estígio ao seu lado. Ele não notou Frank, mas focou seus olhos em Hazel, parecia poder ler toda a sua vida.
— Você é diferente — disse ele. — Uma criança de Plutão. Você se lembra de seu passado.
— Sim — Hazel confirmou. — E você está vivo.
Nico estudou-a como se estivesse lendo um cardápio, decidindo ou não fazer seu pedido.
— Eu sou Nico di Angelo. Eu vim à procura de minha irmã. Está morta, tenho sentido sua falta, então pensei... pensei que poderia trazê-la de volta e ninguém notaria.
— De volta à vida? — Hazel perguntou. — Isso é possível?
— Deveria ser. — Nico suspirou. — Mas ela se foi. Escolheu renascer para uma nova vida. Estou muito atrasado.
— Sinto muito.
Ele estendeu a mão.
— Você é minha irmã também. Merece outra chance. Venha comigo.

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