quinta-feira, 17 de outubro de 2013

IV - Annabeth








ANNABETH QUIS ODIAR NOVA ROMA, mas como uma aspirante a arquiteta, não podia deixar de admirar os jardins nos terraços, as fontes e templos, as ruas sinuosas de paralelepípedos e as reluzentes casas brancas. Depois da Guerra dos Titãs no verão passado, tinha conseguido seu trabalho dos sonhos de redesenhar os palácios do Monte Olimpo. Agora, caminhando por esta miniatura de cidade, ela continuava pensando, Eu devia ter feito um domo como esse. Adoro o jeito que aquelas colunas levam em direção àquele pátio. Quem quer que tenha desenhado Nova Roma, dedicou muito tempo e amor a esse projeto.
— Nós temos os melhores arquitetos e construtores do mundo — Reyna disse, como se estivesse lendo seus pensamentos. — Roma sempre teve, nos tempos antigos. Muitos semideuses ficam para viver aqui depois de seu tempo na Legião. Eles vão à nossa universidade. Instalam-se para criar famílias. Percy pareceu bem interessado nesse fato.
Annabeth imaginou o que isso significava. Ela deve ter feito uma careta mais feroz do que tinha percebido, porque a pretora começou a rir.
— Você é uma guerreira. Tudo bem — a pretora disse. — Você tem fogo em seus olhos.
— Sinto muito — Annabeth tentou diminuir o brilho.
— Não sinta. Eu sou uma filha de Belona.
— Deusa romana da guerra?
Reyna concordou. Ela se virou e assoviou como se estivesse chamando um táxi. Um momento depois, dois cães de metal correram em direção a elas – galgos autômatos, um prata e um dourado. Eles se esfregaram nas pernas de Reyna e estudaram Annabeth com seus olhos reluzentes de rubi.
— Meus bichinhos — Reyna explicou. — Aurum e Argentum. Você não se importa se eles andarem conosco?
Mais uma vez, Annabeth teve a sensação de que ela não estava na verdade fazendo um pedido. Ela notou que os galgos tinham dentes parecidos com pontas de flechas de aço. Talvez armas não fossem permitidas dentro da cidade, mas os bichinhos de Reyna ainda podiam retalhá-la em pedaços se quisessem.
Reyna conduziu-a até um café, onde o garçom claramente a conhecia. Ele sorriu e entregou a ela uma xícara para viagem, depois ofereceu uma a Annabeth.
— Você gostaria de alguma coisa? — Reyna perguntou. — Eles fazem um maravilhoso chocolate quente. Não é uma bebida romana na verdade...
— Mas chocolate é universal — Annabeth completou.
— Exatamente.
Era uma tarde morna de junho, mas Annabeth aceitou a xícara com um agradecimento. As duas então continuaram a caminhar, os cães prata e ouro de Reyna rondando ao redor.
— Em nosso acampamento — Reyna disse — Atena é Minerva. Você está familiarizada com o quanto a forma romana dela é diferente?
Annabeth não tinha realmente considerado isso antes. Ela lembrou do modo como Términus tinha chamado Atena de aquela deusa, como se ela fosse escandalosa. Octavian tinha agido como se até a existência de Annabeth fosse um insulto.
— Eu suponho que Minerva não seja... hã, muito respeitada aqui?
Reyna soprou o vapor de sua xícara.
— Nós respeitamos Minerva. Ela é a deusa da estratégia e da sabedoria... Mas não é realmente uma deusa da guerra. Não para os romanos. Ela também é uma deusa virgem, como Diana... Que vocês chamam de Ártemis. Você não vai achar nenhuma filha de Minerva aqui. A ideia de que Minerva tivesse filhos... francamente, é um pouco chocante para nós.
— Oh — Annabeth sentiu seu rosto corar.
Ela não queria entrar em detalhes sobre os filhos de Atena – como eles nasciam direto da mente da deusa, exatamente como a própria Atena brotara da cabeça de Zeus. Falar sobre isso sempre fazia Annabeth se sentir constrangida, como se ela fosse algum tipo de aberração. As pessoas geralmente perguntavam se ela tinha um umbigo ou não, já que ela tinha nascido magicamente. É claro que ela tinha um umbigo. Só não conseguia explicar como. Na verdade, não queria saber.
— Eu entendo que vocês gregos não vejam as coisas do mesmo jeito — Reyna continuou. — Mas os romanos levam os votos de castidade muito a sério. As Virgens Vestais por exemplo... Se elas quebrarem seus votos, se apaixonarem por alguém, seriam enterradas vivas. Então a ideia de que uma deusa virgem tenha filhos...
— Entendi — o chocolate quente de Annabeth estava com gosto de poeira. Não admira que os romanos ficassem olhando ela de modo estranho. — Suponho que eu não deveria existir. E mesmo se em seu acampamento tivessem filhas de Minerva...
— Elas não seriam como você — Reyna disse. — Poderiam ser artesãs, artistas, talvez conselheiras, mas não guerreiras. Nem lideres de missões perigosas.
Annabeth começou a pensar que ela não era a líder da missão. Não oficialmente. Mas imaginou se seus amigos no Argo II concordariam. Nos últimos dias, eles vinham procurando-a em busca de ordens. Até mesmo Jason, que poderia ter tomado o posto como filho de Júpiter e o treinador Hedge, que não acatava ordens de ninguém.
— Tem mais — Reyna estalou os dedos e seu cão dourado, Aurum, trotou até ela. A pretora acariciou a orelha dele. — A harpia Ella... Foi uma profecia o que ela disse. Nós duas sabemos disso, não é?
Annabeth engoliu em seco. Alguma coisa nos olhos de rubi de Aurum a deixavam nervosa. Ela tinha ouvido que cães podiam farejar o medo e até detectar mudanças na respiração dos humanos e nos batimentos cardíacos. Ela não sabia se isso era aplicado a cães mágicos de metal, mas decidiu que seria melhor dizer a verdade.
— Pareceu uma profecia sim — admitiu. — Mas eu nunca tinha encontrado Ella antes de hoje e nunca tinha ouvido aqueles versos exatamente.
— Eu já — Reyna murmurou. — Pelo menos algumas partes...
A alguns metros de distancia, o cachorro prateado latiu. Um grupo de crianças saiu de um beco próximo e se reuniu ao redor de Argentum, fazendo gracinha com o cachorro e rindo, sem se preocupar com seus dentes de navalha afiada.
— Nós devíamos continuar — Reyna disse.
Elas abriram caminho até o topo da colina. Os galgos as seguiram, deixando as crianças para trás. Annabeth continuava olhando para o rosto de Reyna. Uma vaga memória começou a se arrastar até ela – o jeito que Reyna penteava o cabelo para trás da orelha, o anel de prata que ela usava com o desenho da tocha e da espada.
— Nós já nos encontramos antes — Annabeth arriscou. — Você era mais nova, eu acho.
Reyna deu a ela um sorriso amarelo.
— Muito bem. Percy não se lembrou de mim. É claro que você falou bem mais com minha irmã mais velha Hylla, que agora é a rainha das Amazonas. Ela partiu ainda essa manhã, antes de vocês chegarem. De qualquer maneira, quando nos encontramos da última vez, eu era uma mera camareira na casa de Circe.
— Circe...
Annabeth lembrou-se de sua viagem até a ilha da feiticeira. Ela tinha treze anos. Percy e ela tinham chegado a costa pelo Mar dos Monstros. Hylla os havia recepcionado. Ela tinha ajudado Annabeth a se limpar e dado a ela um vestido novo e uma maquiagem completa. Depois Circe fez sua oferta: se Annabeth ficasse na ilha, poderia ter treinamento em magia e um poder incrível. Annabeth tinha ficado tentada, talvez só um pouco, até perceber que o lugar era uma armadilha e Percy tinha sido transformado em um porquinho-da-índia (essa última parte pareceu bem engraçada depois, mas naquele momento, aquilo tinha sido aterrorizante). Quanto a Reyna... Ela tinha sido uma das serviçais que haviam penteado o cabelo de Annabeth.
— Você... — Annabeth disse se divertindo. — E Hylla é rainha das Amazonas? Como vocês duas...?
— Longa história. Mas eu me lembro bem de você. Você foi corajosa. Eu nunca tinha visto ninguém recusar a hospitalidade de Circe, muito menos passar a perna nela. Não é á toa que Percy goste de você.
A voz dela era desejosa. Annabeth pensou que talvez fosse mais seguro não responder.
Elas chegaram ao topo da colina, onde um terraço dava vista para todo o vale.
— Esse é o meu lugar favorito — Reyna disse. — O Jardim de Baco.
As treliças das parreiras formavam um dossel sobre suas cabeças. Abelhas zumbiam através de madressilva e jasmim, que enchiam o ar da tarde com uma estonteante mistura de perfumes. No meio do terraço ficava uma estátua de Baco em algum tipo de pose de balé, usando nada além de uma tanga, as bochechas dele estufadas e os lábios franzidos, jorrando água em direção a fonte.
Apesar de suas preocupações, Annabeth quase riu. Ela conhecia o deus em forma grega, Dionísio – ou Sr. D, como ele era chamado no Acampamento Meio-Sangue. Ver seu antigo excêntrico diretor imortalizado em pedra, usando uma fralda e expelindo água de sua boca, fez o coração dela ficar mais leve.
Reyna parou na beira do terraço. A vista fazia a subida valer a pena. A cidade inteira se espalhava abaixo delas como um mosaico em 3D. Ao sul, além do lago, um grupo de templos se encarapitava numa colina. Ao norte, um aqueduto marchava em direção a Berkeley Hills. Equipes de trabalho estavam reparando uma seção quebrada, provavelmente danificada na batalha recente.
— Eu queria escutar de você — Reyna disse.
Annabeth se virou.
— Escutar o que de mim?
— A verdade — Reyna disse. — Convença-me de que não estou cometendo um erro por confiar em você. Fale-me sobre você. Conte-me sobre o Acampamento Meio-Sangue. Sua amiga Piper tem feitiçaria na voz. Eu passei tempo o suficiente com Circe para reconhecer encanto de voz quando escuto. Não consigo ver a verdade no que ela diz. E Jason... bem, ele mudou. Parece distante, não muito romano.
A dor em sua voz era tão aguda quanto cacos de vidro. Annabeth imaginou se ela havia soado desse jeito, todos os meses que passou procurando por Percy. Pelo menos tinha achado seu namorado. Reyna não tinha ninguém. Ela fora responsável por dirigir um acampamento inteira sozinha. Annabeth podia sentir que Reyna queria que Jason a amasse.
Mas ele tinha desaparecido, apenas para voltar com uma namorada nova. Enquanto isso, Percy tinha sido eleito pretor, mas tinha rejeitado Reyna também. Agora Annabeth tinha vindo para levá-lo embora. Reyna iria ficar sozinha de novo, segurando nos ombros uma obrigação que deveria ser para duas pessoas.
Quando Annabeth chegou ao acampamento Júpiter, estava preparada para negociar com Reyna ou até lutar com ela se necessário. Ela não tinha se preparado pra sentir pena. Ela manteve aquele sentimento escondido. Reyna não aparentava ser alguém que apreciaria pena.
Ao invés disso, contou para a pretora sobre sua própria vida. Ela falou sobre seu pai, sua madrasta e seus dois meios-irmãos em São Francisco e como ela tinha se sentido uma estranha em sua própria família. Falou sobre como tinha fugido quando tinha apenas sete anos, encontrando seus amigos Luke e Thalia e fazendo seu caminho até o Acampamento Meio-Sangue em Long Island. Ela descreveu o acampamento e seus anos crescendo lá. Falou sobre conhecer Percy e as aventuras que eles tinham tido juntos.
Reyna era uma boa ouvinte.
Annabeth ficou tentada a contar a ela sobre seus problemas mais recentes: Sua briga com a mãe, a moeda de prata de presente e os pesadelos que vinha tendo – sobre um medo antigo tão paralisante, que quase tinha decidido não vir nesta missão. Mas ela não conseguia se forçar a se abrir tanto.
Quando Annabeth acabou de falar, Reyna olhou para Nova Roma. Seus galgos de metal farejavam pelo jardim, mordendo abelhas nas madressilvas. Finalmente, Reyna apontou para o grupo de templos na colina distante.
— A construção vermelha pequena — ela disse — Lá no lado mais ao norte? Aquele é o templo de minha mãe, Belona. — Reyna se virou em direção a Annabeth. — Diferente de sua mãe, Belona não tem uma equivalente grega. Ela é totalmente e verdadeiramente romana. É a deusa da proteção da terra natal.
Annabeth não disse nada. Sabia muito pouco sobre a deusa romana. Desejou ter estudado mais, mas latim nunca foi tão fácil pra ela quanto grego. Lá embaixo, o casco do Argo II reluzia enquanto ele flutuava sobre o fórum, como um balão de festa de bronze maciço.
— Quando os romanos vão à guerra — Reyna continuou — Nós vamos antes ao templo de Belona. Lá dentro tem um pedaço de chão simbólico que representa o solo inimigo. Nós arremessamos uma lança naquele chão, indicando que agora estamos em guerra. Veja, romanos sempre acreditaram que o ataque é a melhor defesa. Nos tempos antigos, sempre que nossos ancestrais se sentiam ameaçados por seus vizinhos, eles invadiam para se proteger.
— Eles conquistaram todos ao redor deles — Annabeth disse. — Cartágo, os gauleses...
— E os gregos — Reyna deixou aquele comentário no ar. — O que quero dizer, Annabeth, é que não é da natureza de Roma cooperar com outros poderes. Toda vez que semideuses gregos e romanos se encontraram, nós tivemos luta. Conflitos entre nossos dois lados começaram algumas das mais horríveis guerras da história humana – principalmente guerras civis.
— Isso não tem que ser desse jeito — Annabeth disse. — Nós temos que conseguir trabalhar juntos ou Gaia vai nos destruir a ambos.
— Concordo — Reyna disse. — Mas a cooperação é possível? E se o plano de Juno falhar? Até deuses podem cometer erros.
Annabeth esperou que Reyna fosse atingida por um raio ou transformada em um pavão. Nada aconteceu.
Infelizmente, Annabeth partilhava das duvidas de Reyna. Hera cometia erros. Annabeth não tinha tido nada além de problemas daquela deusa arrogante e nunca perdoou Hera por levar Percy embora, mesmo que fosse por uma causa nobre.
— Eu não confio na deusa — Annabeth admitiu. — Mas eu confio nos meus amigos. Isso não é um truque, Reyna. Nós podemos trabalhar juntos.
Reyna terminou sua xícara de chocolate. Ela colocou a xícara sobre o parapeito do terraço e olhou fixamente o vale como se estivesse imaginando frentes de batalha.
— Eu acredito que você creia nisso — ela disse. — Mas se você for para as terras antigas, principalmente para Roma, tem uma coisa que você deve saber sobre sua mãe.
Os ombros de Annabeth ficaram tensos.
— Mi-minha mãe?
— Quando eu vivi na ilha de Circe — Reyna disse — Nós tínhamos muito visitantes. Uma vez, talvez um ano antes de você e Percy chegarem, um rapaz chegou à costa. Ele estava meio louco pela sede e calor. Tinha ficado à deriva no mar por dias. As palavras dele não faziam muito sentido, mas disse que era um filho de Atena.
Reyna fez uma pausa, como se esperasse por uma reação. Annabeth não fazia ideia de quem poderia ser o rapaz. Ela não estava ciente de nenhum outro filho de Atena que tivesse partido em uma missão no Mar de Monstros, mas mesmo assim ela teve uma sensação de pavor. A luz filtrada através das parreiras formava sombras distorcidas pelo chão como um enxame de insetos.
— O que aconteceu com esse semideus? — perguntou.
Reyna balançou a mão como se a pergunta fosse trivial.
— Circe o transformou em um porquinho-da-índia, é claro. Ele deu um roedorzinho muito louco. Mas antes disso, ele continuou delirando sobre a falha da missão dele. Ele dizia que tinha ido a Roma, seguindo a Marca de Atena.
Annabeth se agarrou no parapeito para manter o equilíbrio.
— Sim — Reyna disse, vendo seu desconforto. — Ele continuou murmurando sobre a filha da sabedoria, a Marca de Atena, e a ruína dos gigantes se apresentar dourada e pálida. Os mesmos versos que Ella estava recitando. Mas você diz que nunca ouviu sobre eles antes de hoje?
— Não... Não do jeito que Ella disse — a voz de Annabeth estava fraca.
Ela não estava mentindo. Nunca tinha ouvido aquela profecia, mas sua mãe a tinha encarregado de seguir a Marca de Atena; e enquanto pensava sobre a moeda na carteira dela, uma suspeita horrível começou a criar raízes em sua mente. Ela se lembrou das palavras cruéis de sua mãe. Pensou sobre os estranhos pesadelos que vinha tendo ultimamente.
— Esse semideus... Ele explicou a missão dele?
Reyna sacudiu a cabeça.
— Naquele tempo, eu não tinha ideia do que ele estava falando. Muito depois, quando me tornei pretora do Acampamento Júpiter, comecei a suspeitar.
— Suspeitar... De quê?
— Existe uma velha lenda que os pretores do Acampamento Júpiter tem passado entre si há séculos. Se for verdade, isso pode explicar porque nossos dois grupos de semideuses nunca foram capazes de trabalhar em conjunto. Isso pode ser a causa da animosidade. Até que essa dívida antiga seja quitada, assim diz a lenda, romanos e gregos nunca ficarão em paz. E a lenda se concentra em Atena...
Um som estridente perfurou o ar. Uma luz brilhou no canto do olho de Annabeth. Ela se virou a tempo de ver uma explosão abrir uma nova cratera no fórum. Um sofá em chamas foi arremessado pelo ar. Semideuses se dispersaram em pânico.
— Gigantes? — Annabeth levou a mão a sua adaga, que é claro não estava lá. — Eu achei que o exército deles estava derrotado!
— Não são os gigantes. — Os olhos de Reyna ferviam de fúria. — Vocês traíram a nossa confiança.
— O que? Não!
No momento em que ela disse isso, a Argo II lançou uma segunda saraivada. A balista a bombordo disparou uma enorme lança coberta com Fogo Grego, que viajou direto através da redoma quebrada do Senado e explodiu lá dentro, acendendo o prédio como uma lanterna de abóbora no hallowen. Se alguém estivesse lá...
— Deuses, não — uma onda de náusea quase fez os joelhos de Annabeth se dobrarem — Reyna, isso não é possível. Nós nunca faríamos isso!
Os cães de metal correram para o lado de sua senhora. Eles rosnaram pra Annabeth, mas andaram de um lado pra outro incertos, como se relutassem em atacar.
— Você está dizendo a verdade — Reyna julgou. — Talvez não estivesse consciente dessa traição, mas alguém deve pagar.
Lá embaixo no fórum, o caos estava se espalhando. Multidões estavam se empurrando. Brigas de socos estavam irrompendo.
— Carnificina — Reyna disse.
— Nós temos que parar isso!
Annabeth teve a horrível sensação de que essa podia ser a última vez que Reyna e ela agiam em concordância, mas juntas elas correram colina abaixo.
Se as armas fossem permitidas na cidade, os amigos de Annabeth já deviam estar mortos. Os semideuses romanos no fórum tinham se transformado em uma turba raivosa. Alguns arremessavam pratos, comida e pedras no Argo II, o que era inútil, já que a maioria das coisas caía de volta na multidão.
Várias dúzias de romanos tinham cercado Piper e Jason, que estavam tentando acalmá-los sem muita sorte. O encanto na voz de Piper era inútil contra tantos semideuses raivosos gritando. A testa de Jason estava sangrando. Sua capa roxa tinha sido rasgada em retalhos. Ele continuava suplicando – Eu estou do lado de vocês! – mas a sua camiseta laranja do Acampamento Meio-Sangue não estava ajudando – nem a cabeça na frente do navio de guerra, disparando lanças em chamas em direção a Nova Roma. Uma caiu perto e queimou uma loja de togas até os cascalhos.
— Pelas ombreiras de Plutão — Reyna amaldiçoou. — Olhe.
Legionários armados estavam correndo em direção ao fórum. Dois grupos de artilharia tinham arrumado catapultas logo depois da Linha Pomeriana e estavam se preparando para disparar no Argo II.
— Isso só vai piorar as coisas — Annabeth disse.
— Eu odeio meu trabalho — Reyna rosnou.
Ela correu em direção aos legionários, seus cães ao seu lado.
Percy, Annabeth pensou, vasculhando o fórum desesperadamente. Onde está você?
Dois romanos tentaram agarrá-la. Ela passou por baixo deles, mergulhando na multidão.
Como se romanos furiosos, sofás flamejantes e prédios explodindo não fosse confusão o bastante, centenas de fantasmas púrpura vagavam através do fórum, passando direto através dos corpos dos semideuses e gemendo incoerentemente. Os faunos também tiravam vantagem do caos. Cercaram as mesas de jantar, pegando comida, pratos e copos. Um deles passou por Annabeth com os braços cheios de tacos e um abacaxi inteiro entre os dentes.
Uma estátua de Términus, que explodia ao aparecer, surgiu bem na frente de Annabeth. Ele a xingava em latim, sem duvida chamando-a de mentirosa e quebradora de regras; mas ela empurrou a estátua e continuou correndo.
Finalmente, ela avistou Percy. Ele e seus amigos, Hazel e Frank, estavam de pé no meio de uma fonte enquanto Percy repelia os romanos furiosos com disparos de água. A toga de Percy estava em frangalhos, mas ele parecia ileso.
Annabeth chamou por ele enquanto outra explosão colidia contra o fórum. Desta vez, o flash de luz foi diretamente sobre a cabeça dela. Uma das catapultas romanas havia disparado e o Argo II gemeu e adernou para os lados, chamas borbulhavam sobre o casco coberto de bronze.
Annabeth notou uma figura se agarrando desesperadamente na escada de corda, tentando descer. Era Octavian, seu robe fumegava e tinha o rosto negro de fuligem. Acima da fonte, Percy fez a multidão romana voar pelos ares com mais água. Annabeth correu em direção a ele, esquivando do punho de um romano e de um prato de sanduíches voador.
— Annabeth! — Percy chamou. — O que...?
— Eu não sei! — ela gritou.
— Eu te digo o quê! — gemeu uma voz de cima. Octavian tinha chegado ao fim da escada. — Os gregos atiraram em nós! Seu garoto Leo mirou as armas dele em Roma!
O peito de Annabeth se encheu com hidrogênio liquido. Ela sentiu como se pudesse se partir em um milhão de pedaços congelados.
— Você está mentindo — ela disse. — Leo nunca...
— Eu estava lá! — Octavian guinchou. — Vi com meus próprios olhos!
O Argo II disparou de volta. Os legionários no campo se espalharam assim que uma de suas catapultas foi reduzida a estilhaços.
— Vocês viram? — Octavian gritou. — Romanos, matem os invasores!
Annabeth rosnou de frustração. Não tinha tempo pra ninguém descobrir a verdade. O grupo do Acampamento Meio-Sangue era superado numericamente de cem para um, e mesmo se Octavian tivesse conseguido encenar algum truque (o que ela achava provável), eles nunca seriam capazes de convencer os Romanos antes que eles fossem abordados e mortos.
— Nós temos que partir — ela disse a Percy. — Agora.
Ele concordou tristemente.
— Hazel, Frank vocês vão ter que fazer uma escolha. Vocês vêm?
Hazel pareceu aterrorizada, mas vestiu seu elmo de cavalaria.
— É claro que nós vamos. Mas vocês nunca vão conseguir chegar até o navio a menos que ganhemos algum tempo para vocês.
— Como? — Annabeth perguntou.
Hazel assoviou. Instantaneamente um borrão bege disparou através do fórum. Um majestoso cavalo se materializou perto da fonte. Ele empinou, relinchando e dispersando a turba. Hazel subiu em suas costas como se ela tivesse nascido para montar. Presa na cela do cavalo estava uma espada romana de cavalaria.
Hazel desembainhou sua lâmina dourada.
— Mande-me uma mensagem de Íris quando estiverem a salvo fora daqui e nós vamos nos reunir — ela disse. — Arion, cavalgue!
O cavalo disparou através da multidão com uma velocidade incrível, empurrando os romanos pra trás e causando pânico em massa. Annabeth sentiu um brilho de esperança. Talvez eles conseguissem sair dali com vida. Então, a meio caminho do fórum, ela ouviu Jason gritando.
— Romanos! — ele gemeu. — Por favor!
Ele e Piper estavam sendo bombardeados com pratos e pedras. Jason tentou proteger Piper com seu corpo, mas um tijolo o pegou acima dos olhos. Ele arqueou e a multidão avançou à frente.
— Para trás! — Piper gritou.
Seu encanto de voz se espalhou sobre a turba, fazendo-os hesitar, mas Annabeth sabia que o efeito não ia durar. Percy e ela possivelmente não conseguiriam chegar a tempo de ajudar.
— Frank — Percy disse — É com você. Consegue ajudá-los?
Annabeth não entendeu como Frank poderia fazer tudo aquilo sozinho, mas ele engoliu nervosamente.
— Oh, deuses — ele murmurou. — Ok, claro. Vão para as cordas. Agora.
Percy e Annabeth avançaram para a escada. Octavian ainda estava agarrado ao final da escada, mas Percy o arrancou e o arremessou na multidão.
Eles começaram a escalar enquanto legionários armados inundavam o fórum. Flechas assoviaram atrás da cabeça de Annabeth. Uma explosão quase os derrubou da escada. A meio caminho do topo, ouviu um rugido abaixo e olhou pra lá.
Romanos gritavam e se dispersavam enquanto um dragão adulto atacava através do fórum – uma fera bem mais assustadora do que o dragão de bronze na frente do Argo II. Ele tinha uma grossa pele cinza como a do dragão de Komodo e asas encouraçadas de morcego. As flechas quicavam inofensivamente na pele dele enquanto ele se arrastou em direção a Piper e Jason, os agarrou com suas garras dianteiras e levantou voo.
— Isso é...? — Annabeth não conseguia nem colocar o pensamento em palavras.
— Frank — Percy confirmou, alguns metros acima dela. — Ele tem alguns talentos especiais.
— Que eufemismo — Annabeth murmurou. — Continue escalando!
Sem o dragão e o cavalo de Hazel para distrair os arqueiros, eles nunca teriam conseguido chegar à escada, mas finalmente eles escalaram, passando por uma fileira de remos aéreos até o convés. O cordame estava em chamas. A vela principal estava rasgada ao meio e o navio adernava muito para estibordo.
Não havia sinal do treinador Hedge, mas Leo estava de pé no meio do navio, recarregando calmamente a balista. As vísceras de Annabeth se reviraram em horror.
— Leo! — ela gritou. — O que você está fazendo?
— Destruir eles... — ele encarou Annabeth, os olhos dele estavam vidrados. Os movimentos dele eram como o de um robô. — Destruir todos eles.
Ele se virou de volta pra a balista, mas Percy o impediu. A cabeça de Leo bateu no convés duro e os olhos dele viraram nas órbitas, até que só o branco dos olhos aparecia.
O dragão cinza voou para seu campo de visão. Ele circulou o navio e pousou no barco, depositando Jason e Piper, estavam ambos desmaiados.
— Vai! — Percy gritou. — Tira a gente daqui!
Chocada, Annabeth percebeu que ele estava falando com ela. Ela correu para o timão. Cometeu o erro de olhar por cima da balaustrada e viu legionários armados cerrando fileiras no fórum, preparando flechas de fogo. Hazel estimulou Arion e eles correram para fora da cidade com uma multidão os perseguindo. Mais catapultas estavam sendo empurradas para o campo de alcance. Todas ao longo da Linha Pomeriana, as estátuas de Términus estavam reluzindo púrpura, como se estivessem juntando energia para algum tipo de ataque.
Annabeth olhou para os controles. Ela amaldiçoou Leo por tê-los feito tão complicados. Não tinha tempo para manobras extravagantes, mas conhecia um comando básico: Para cima.
Ela agarrou o manche de aviação e puxou direto para trás. O navio gemeu. O barco inclinou para cima num ângulo horripilante. Os cabos de amarração estalaram e o Argo II disparou para as nuvens.

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